No início de outubro de 2013, um Palio Weekeend Adventure trafegou por 5,5 km nas ruas de São Carlos sem qualquer interferência do motorista. Foi o primeiro experimento do tipo no Brasil, comandado por pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação, da USP de São Carlos, e colocou o País definitivamente no mapa da corrida pelo desenvolvimento de carros autônomos, onde competem gigantes do porte de Google, Uber e Tesla, além de montadoras tradicionais.
Em maio de 2017, um segundo experimento, desta vez no Espírito Santo, envolveu 74 km de percurso entre a capital Vitória e a cidade de Guarapari. Os testes foram considerado um sucesso pelo LCAD (Laboratório de Computação de Alto Desempenho), da Universidade Federal do Espírito Santo, onde as pesquisas com carros autônomos se iniciaram em 2009.
Segundo o coordenador do projeto do carro autônomo capixaba e do LCAD, professor Dr. Alberto Ferreira de Souza, a única grande interferência na direção do veículo durante a viagem envolveu um semáforo em amarelo piscante, situação que não havia sido programado pelos pesquisadores.
— Nosso objetivo de longo prazo é entender como o cérebro humano funciona. Na Ciência, nós estabelecemos objetivos de longo prazo e o quebramos em pequenos pedaços. O carro autônomo é nossa plataforma para entender isso. O carro exige muita capacidade intelectual e cognitiva para ser operado — explicou Souza, em uma entrevista coletiva logo após o experimento.
Para funcionar, um carro autônomo utiliza uma série de mecanismos complexos não apenas para controlar o veículo, mas também identificar sinalizações, faixas de trânsito, reformas na pista e reagir a outros veículos.
Os sistemas necessários para o funcionamento de carros com direção automatizado diferem de acordo com o fabricante. A maioria deles em fase experimental ostenta uma parafernália no teto para mapear o ambiente e um computador de alto desempenho no painel para lidar com a montanha de dados gerado por esses veículos.
Nos carros de grandes montadoras, todo o equipamento está integrado ao design do veículo. Eles geralmente contam com sensores que mapeiam a estrada, câmeras para identificar sinais de trânsito, sensores ultrassônicos para ajudar a estacionar e radares para identificar obstáculos mais distantes.
O mais importante, entretanto, é invisível: o sofisticado conjunto de softwares que controlam tudo. No carro experimental da Ufes, o IARA, são mais de 20 módulos de software apenas para simular nossa visão e capacidade de reação.
No carro autônomo do Projeto CaRINA, da USP, existem sistemas embarcados para aprendizado de caminhos urbanos, que armazenam pontos de rotas por GPS e visualização de câmera; outro sistema que funciona como interface de controle do veículo, que permite que a inteligência artificial controle o veículo e ainda assim mantenha a possibilidade de controle humano; um programa que percebe as bordas de estrada, faixas de sinalização e ainda aprender a localização de cada uma delas para conseguir se localizar no espaço; e ainda um programa que mapeia os limites de uma estrada e até onde é possível navegar.
Apesar do avanço explosivo da inteligência artificial na última década, todas essas tarefas são um desafio para cientistas quando automatizadas. Exatamente por isso, os pesquisadores por trás delas miram objetivos muito mais avançados que apenas melhorar o trânsito.
— Acredito que não exista uma forma de mensurar esse desafio [de programar a inteligência que controla os carros autônomos], pois o ser humano é muito imprevisível e criativo. Apesar disso, os métodos que desenvolvemos hoje em dia são capazes de lidar muito bem com inúmeras situações rotineiras do nosso dia a dia — afirma Patrick Yuri Shinzato, Doutor em Ciências da Computação pela USP e CEO da 3DSoft, primeira startup de veículos autônomos do Brasil, fundada por ex-pesquisadores do Laboratório de Robótica Móvel, da USP em São Carlos, em entrevista ao R7.
A abordagem da 3DSoft é similar à do Google e Apple, e oposta à ideia de grandes montadores. Ao invés de fabricar um veículo física, a empresa trabalha com o desenvolvimento de tecnologias que possam tornar qualquer veículo autônomo.
Essa briga pela dominância no mercado de software de automatização não é nova, mas no Brasil ainda está engatinhando — fora dos círculos acadêmicos, a 3DSoft é a primeira iniciativa mercadológica.
— Não estamos focados apenas no desenvolvimento de “carros autônomos”. Nosso foco é no desenvolvimento de toda a tecnologia que torna um veículo normal um veículo autônomo, seja ele um carro, caminhão ou trator.
Shinzato ainda explica que os esforços da empresa são direcionados para essa tecnologia porque não há legislação para carros autônomos no Brasil.
Homem vs Máquina
Mas existe um problema subjacente sobre o quão avançada pode ser uma inteligência artificial sem “assustar” os seres humanos que a usam. Uma decisão “sem sentido” claro da máquina pode prejudicar esse tipo de produto.
É esse tipo de ruído que cientistas da computação querem evitar, uma realidade onde seres humanos não entendem a lógica da tomada de decisões de inteligências artificiais. Por isso, uma das grandes discussões na construção de veículos autônomos é o quão transparente um sistema autônomo deve ser. Tudo para manter os humanos dentro dos veículos seguros.
A necessidade de deixar motoristas (ou passageiros, no fim das contas) mais confortáveis fez até o Google recuar de seu design inicial para carros futuristas de fato. A ideia do Google era dispensar até volantes e pedais: apenas um botão de pânico estaria presente e de resto bastava sentar e esperar ele chegar ao destino. Por isso, empresas planejam formas de dar algum controle aos seres humanos, como interagir através de smartphones e escolher rotas após o carro acelerar pela primeira vez.
Mas o grande desafio dos veículos autônomos ainda não está completamente resolvido. De quem será a culpa quando um sistema autônomo matar um pedestre? Ou ainda: em uma situação de acidente, o veículo deve priorizar a vida do ocupante do veículo ou de pedestres? E se forem 10 pedestres? E se for um bebê? O carro conseguirá diferenciar um bebè de um gato antes de tomar decisões?
De fato, nem os cientistas conseguem prever com precisão como as máquinas tomam decisões, uma vez que programaram algoritmos e softwares que controlam essas funções e utilizam o chamado aprendizado de máquina para funcionar.
Isso significa que ao tomar uma decisão o programa não exibe todo o caminho que o levou a fazer isso, o que pode quebrar um pouco a confiança que humanos terão em seus carros autônomos. Provavelmente, ninguém quer um carro que o tome a decisão de matar um ocupante, mesmo que seja para salvar algum pedestre desavisado.
Especialistas do mundo inteiro debatem sobre como essa questão pode se resolver e apenas concordam que cada acidente demandará uma análise de dados gigante para ser esclarecida.
— Não cabe a nós desenvolvedores decidir. Esse tipo de questão deverá ser discutido por autoridades do Estado e acredito que no fim, cada Estado terá a sua própria decisão seguida de inúmeras regulamentações para garantir seu cumprimento — esclarece Patrick Shinzato.
É uma resposta ligeiramente difusa, mas ilumina o estado nebuloso no momento. Em nota da área técnica do Denatran enviada ao R7, o departamento afirma que “está começando a discutir” uma futura lei que autorize a circulação de veículos autônomos no Brasil.
Mas o caminho ainda está longe de ser completado. Segundo o Denatran, “deverão existir estudos técnicos que atestem a viabilidade, uso seguro, responsabilidade por danos, além de novas regras para condutores”, além de mudanças claras na infraestrutura viária. O Denatran não autorizou nenhum dos seus técnicos a darem entrevista ao R7, e afirmou que esse ainda não é o momento para se manifestar sobre as mudanças que carros autônomos podem provocar no trânsito brasileiro.
As montadoras já possuem respostas prontas sobre o impacto de carros autônomos no trânsito brasileiro, que possui um dos maiores índices de letalidade do mundo.
— Os carros autônomos podem melhorar muito a situação violenta do trânsito brasileiro. A nossa principal motivação é justamente evitar acidentes. Nossos dados indicam que 95% dos acidentes são provocados por fatores humanos e obviamente retirar os condutores do veículo tende a diminuir drasticamente esse índice. E o trânsito também fluirá melhor, uma vez que muitos congestionamentos são causados por acidentes na pista — afirma em entrevista ao R7 Jorge Mussi, diretor de Pós-Venda da Volvo, uma das montadoras que trouxeram carros com algum grau de autonomia na direção para o Brasil.
O sistema da Volvo estaciona o carro, o mantém em faixas da pista, detecta animais na pista, além de controles automáticos de aceleração e frenagem. Mas o motorista não pode tirar as mãos do volante ou um aviso sonoro o avisará para segurá-lo novamente. O jornalista Paulo Amaral, autor do blog Garagem R7 testou um veículo desse tipo da Volvo e mostra que nem sempre o carro autônomo toma as decisões certas:
A situação na Califórnia é muito diferente e mudará ainda mais em 2018. No estado americano, foi aprovada uma lei que permite testes com veículos autônomos sem a presença de motoristas, o que autoriza a todos os pesquisadores conduzirem os testes de forma remota a partir de 2018. O governo local descreve a exigência antiga como uma forma de “limitar desnecessariamente o desenvolvimento da tecnologia”.
— Estamos emocionados de dar mais um passo para promover o desenvolvimento desta tecnologia que potencialmente pode salvar vidas na Califórnia — afirmou Brian Kelly, secretário de transportes da Califórnia, em entrevista coletiva para anunciar a mudança, em 11 de outubro.
A Califórnia, onde o Vale do Silício e os gigantes da tecnologia apontam como será o futuro, é o local onde as discussões em torno do tema estão mais avançadas e parece ser questão de tempo antes de outros estados americanos adotarem novas legislações similares sobre a questão.
Em setembro, a própria Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou uma legislação abrangente sobre a fabricação de veículos autônomos, dando incentivos fiscais para empresas lançarem suas frotas com todas as medidas de segurança possíveis. A matéria segue para o Senado, onde é esperada uma nova aprovação.
Fora do território americano existem divergências. A Europa é a principal delas. As leis locais, à exemplo da maioria das outras nações, exige que um motorista possa sempre retomar o controle dos veículos quando necessário.
O avanço na legislação no Velho Continente ocorreu ao mesmo tempo em que a própria Convenção das Nações Unidas sobre Trânsito Viário, de 1968, sofreu uma alteração importante em abril de 2014. Ela agora permite que em veículos descritos pelos fabricantes como autônomos, o motorista tire as mãos do volante, desde que o sistema permita que os condutores assumam o controle a qualquer momento.
Segundo a Reuters, Alemanha, Itália e França foram os principais países responsáveis por impulsionar as mudanças na ONU — muito provavelmente porque sediam montadoras de veículos consagradas que trabalham ativamente em tecnologias de direção.
Ao todo, 72 países são signatários da Convenção — incluindo o Brasil, onde o decreto foi aprovado em 1981 — e a tendência é que todos eles discutam alterações na legislação vigente para aprovar regras similares sobre carros autônomos.
As grandes montadoras não escondem que as principais barreiras para que os carros autônomos ocupem lugares cada vez mais privilegiados nas lojas com cada vez mais tecnologia envolve principalmente barreiras legais e burocráticas.
Em Gotemburgo, na Suécia, a Volvo empreende o que foi descrito como “o mais ambicioso experimento” em carros autônomos do mundo”. O programa Drive Me, distribuiu 100 unidades do modelo XC90 para famílias comuns testarem a tecnologia de autonomia de direção da empresa. É um grande passo na meta de vender carros com total autonomia — os chamados “nível 4”, capazes de de autopilotagem em velocidades altas — até 2021 para consumidores.
— A Volvo não lançará veículos nível 3 de autonomia [que se autopilotam, mas exigem que o motorista fique atento para possíveis problemas], por ele não oferecer a segurança total que a empresa busca. Dos modelos atuais, iremos direto para os carros nível 4.
O dilema do futuro dos carros autônomos
Não é difícil imaginar um futuro onde os motoristas sejam dispensados e todos os ocupantes do veículo podem fazer coisas mais importantes+, embora num primeiro momento apenas graus menores de autonomia sejam previstos. Mas uma cidade onde não existam motoristas pode ganhar muito mais que redução de acidentes.
— Se você possui uma cidade onde todo seu transporte é autônomo, você elimina a necessidade de semáforos, reduzindo os típicos comportamentos de desacelerar, parar, acelerar. Diminui drasticamente pequenos acidentes que causam pequenos congestionamentos no horários de rush e tudo isso impactará que toda viagem de um ponto A até um ponto B será muito mais rápido do que é hoje em dia — analisa Patrick Shinzato.
Com carros autônomos e conectados à grandes redes operadas por montadoras e empresas de tecnologia, é bem possível que todo o negócio automotivo seja transformado em um futuro próximo. Mas também cresce uma preocupação com segurança.
Apesar de classificar como “bastante hollywoodiano” um cenário onde um hacker assuma o controle do veículo, Shinzato reconhece a necessidade de uma forma segura de lidar com carros conectados.
Enquanto isso, hackers agem. Em setembro de 2015, a Fiat Chrysler precisou fazer um recall que incluiu 7810 unidades de Jeep que tinham um bug que permitia invasores controlarem o veículo à distância.
Apesar de nenhum acidente relacionada à falha ter sido registrada, a empresa precisou agir rápido, principalmente por questões legais. Mas o risco levou o governo do Reino Unido a lançar uma série de diretrizes de segurança para o setor de carros autônomos (em inglês).
E a questão da transparência será cada vez mais importante, uma vez que montadoras e empresas de tecnologia terão cada vez mais dados e muitos deles são dados públicos, uma vez que sistemas de sinalização também serão inteligentes no futuro.
Como governos legislarão em um mundo onde dados antes públicos serão compartilhados com empresas multinacionais bilionárias é a principal incógnita. Dessa resposta depende o futuro da segurança das estradas e da privacidade de cidadãos, que viajarão em carros, caminhões e ônibus guiados por inteligências artificiais que nem os desenvolvedores conseguem explicar como elas decidem, com auxílio de gigantescos sistemas de infraestrutura urbana, tudo conectado à internet.
R7