Uma imagem que circulou pelas redes sociais na sexta-feira (11), segundo dia de abertura ao público, causou comoção nos bastidores do Salão do Automóvel de São Paulo 2016: o pé de uma modelo em “carne viva”, em razão do sapato usado para trabalhar (uma sandália de salto alto tipo gladiador*), era destaque e reacendeu a discussão a respeito do papel da mulher no evento. A discussão segue viva apos a publicação desta reportagem e ações estão sendo tomadas ao longo do domingo para adequar a situação de quem trabalha na feira, de melhoria nos trajes a melhor monitoramento da temperatura do Pavilhão SP Expo.
Cabelo comprido, maquiagem e roupa sensual: se a imagem feminina típica de uma mostra de carros tem mudado ao longo dos anos, com a escolha de homens como promotores e de executivas ocupando o topo da pirâmide das marcas, algumas montadoras ainda fazem valer a relação estereotipada entre mulher e carro, infelizmente.
Oficialmente chamadas de “promotoras”, muitas modelos ainda são apenas “enfeites”. Na Europa, onde muitas das montadoras têm sede, promotoras e promotores sabem detalhes minuciosos de cada modelo e usam roupas cada vez mais formais.
Segundo Ana Theresa Borsari, inédita presidente da Peugeot do Brasil e também a primeira mulher a comandar uma unidade do Grupo PSA no mundo, “a característica em ser muito preocupada com detalhes, diretiva e orientativa em relação às suas estratégias” faz a diferença no sucesso da carreira. “As mulheres sabem achar os caminhos para as coisas”, afirmou a executiva.
“Você vem junto com o carro?”
Na teoria a receita soa bem, mas a realidade é dura. “Se me pagassem uns R$ 600 por dia, acho que toparia machucar o pé”, disse uma das promotoras, com macacão colado ao corpo, a outra que descansava o pé cheio de curativos longe do salto, no banheiro.
Em outra situação relatada à reportagem de UOL Carros, uma promotora passava mal no banheiro enquanto uma colega a incentivava a provocar o próprio vômito, a fim de acelerar a recuperação e retornar logo ao trabalho.
Larissa** contou que houve reclamação de colegas promotoras e promotores, que também trabalham no estande da Jaguar Land Rover, na sexta: “Vimos que era nossa única refeição do dia e ainda assim era de menos de 400 gramas para ficarmos o dia todo. Foi a gota d’água”.
Modelos do estande, mulheres e homens, pediram melhores condições à agência que os contratou. Alguns se mostraram insatisfeitos e ameaçaram não voltar ao trabalho no sábado (12), primeiro dia de final de semana do Salão. Ninguém desistiu, porém, segundo a conta da montadora inglesa, que é cliente da agência que contrata modelos homens e mulheres e disse à reportagem de UOL Carros, no final deste domingo, estar constantemente ouvindo os promotores que trabalham em seu espaço.
Segundo a marca, ajustes foram feitos baseados nessa “conversa” com meninas e meninos que se manifestaram: a pausa passou de um período de uma hora para dois tempos de uma hora; destaques (que ficam ao lado de carros em plataformas giratórias) agora podem tirar alguns momentos para sentar; por fim, a refeição principal foi adequada e inclui um mesão de café da manhã e lanche à tarde disponíveis.
Ainda de acordo com a Jaguar Land Rover, a fabricante soube apenas durante o evento que a ração diária de modelos era diminuta e tratou de ampliar a refeição assim que conversou com modelos e promotores do estande. Além disso, echarpes foram compradas, complementando o vestuário das modelos, que já era mais confortável que o de outros estandes, segundo a empresa. A marca inglesa informou ter procurado organização do Salão e representantes de outras marcas para acordar uma solução para a questão da baixa temperatura no Pavilhão.
“Nenhum funcionário do nosso estande, porém, paga pela alimentação, até porque isso é proibido. A Jaguar Land Rover faz o repasse integral do vale [referente à refeição do período], tanto que foi assim que pudemos verificar e corrigir o caso da alimentação”, informou representante da empresa.
Ainda de acordo com a marca, “qualquer sugestão para melhorar o trabalho durante os 10 dias é bem-vinda”. “Eles reclamaram do cachê e de não ter café de manhã. Estamos aqui para ajudar no que for possível. A partir deste domingo (13), até dia 20, todos terão direito a uma mesa de café da manhã e da tarde. E se estiver frio, pode usar meia-calça e casaco, por que não? Basta falar com a gente”, complementou o executivo da marca.
“O problema é que uma única agência de modelos presta serviço a quase 70% das montadoras que têm estandes. As meninas e também os meninos temem reclamar e ficar sem trabalho”, disse Larissa.
“Enquanto houver meninas que se sujeitem a isso, as marcas vão abusar de sapato e roupa”, apontou outra promotora, que pediu sigilo total.
Mesmo com ajustes, a maior parte dos promotores em todos os estandes fica em pé das 13h às 22h, com apenas uma hora de descanso – “você tem de escolher se vai almoçar ou jantar”. No caso das meninas, a condição é agravada de acordo com os sapatos exigidos: em muitos casos, há saltos de 15 cm.
Herlander Zola, diretor de marketing da Audi no Brasil, disse que as promotoras estão acostumadas a usar este tipo de calçado. “O critério da Audi para escolha das modelos e da vestimenta é equilibrar o conservadorismo e a sensualidade; uma sofisticação com toque de ousadia”, afirma o executivo.
No estande da marca alemã, beleza, salto alto e vestidos longos ditam as regras e não há espaço para homens.
Outra visão
Na Citroën, seis homens e oito mulheres dividem tênis e roupas mais despojadas. A diversidade é semelhante (ainda que não igual) à do espaço da Jaguar Land Rover, que readequou o tratamento aos promotores após conversas internas. Qual a diferença?
“As áreas de marketing e de eventos escolhem os modelos por meio de entrevistas presenciais. Eles têm de conseguir passar a essência da marca, como elegância, personalidade e bem-estar, afinal, a expressão dos promotores reflete o estado de espírito que estão no momento”, afirma Fabiana Rizzi, coordenadora de marketing de eventos na Citroën. “Além disso, precisam ter habilidade para lidar em público para explicar sobre os carros”, completou.
Treinamento no pano
Falando em treinamento, uma das “flanelinhas” de carro de uma marca premium, que chega a limpar um modelo cerca de 150 vezes ao dia, fez sua trajetória profissional lustrando carros em concessionárias.
“Já trabalhei na Toyota, Volkswagen… Conheço cada cantinho desses carros”, disse Lívia**. Para ela, modelos dos estande da marca em que trabalha não sabem nada sobre os carros que estão representando. “Ontem dei uma explicação sobre os modelos para elas. Mas tive de fazer isso escondido”, afirmou.
Assédio ainda é regra
BMW, Mercedes-Benz, Mitsubishi, Suzuki, Chevrolet, além de Citroën e Jaguar Land Rover, são exemplos de montadoras que dividiram a equipe de promotores em equipe mista, com homens e mulheres.
Alguns profissionais de ambos os sexos admitiram sofrer com assédio, seja o de público (geralmente sexual), seja das empresas contratantes (moral). Para as mulheres, no entanto, a carga do machismo ainda é maior.
Em qualquer caso, novamente, é uma realidade muito diferente daquela vista em salões europeus, onde homens e mulheres de praticamente todos os estandes são treinados para conhecer o carro e passar informações detalhadas aos visitantes. UOL Carros constatou isso em Frankfurt 2015, quando foi uma promotora da FCA quem explicou as novidades do pequenino 500.
Se aqui é exceção, lá a regra já é ter muito mais que rostinhos bonitos.
uol