Uma planta com fruto de cor amarelo vivo, em formato de balão e originária do oeste africano é a mais nova aposta de pesquisadores brasileiros para o tratamento da dependência química de usuários de crack. Trata-se da iboga, que contém a substância ibogaína.
No tratamento utilizado atualmente para dependentes, a duração média é de 9 meses, tem alto índice de recaída e as estatísticas mostram que sete em cada pacientes voltam a usar crack.
Por outro lado, os estudos apontam que a ibogaína requer um curto período de internação — cerca de um mês — e é mais eficiente, pois acaba com a vontade de usar o crack novamente.
O crack é um entorpecente derivado da cocaína, substância que vem da planta da coca, nativa dos países andinos da América do Sul, e que se tornou uma grande epidemia mundial.
No Brasil, lugares onde o consumo de crack é diuturno ganharam o nome de cracolândia. Os usuários se comportam como zumbis devido à compulsão pela droga.
O estudo da ibogaína e de outras substâncias psicoativas, como complemento do tratamento para a dependência química, faz parte de um ramo científico chamado Medicina Psicodélica, muito difundido na Europa.
Até agora, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), responsável pela autorização para produção de medicamentos no Brasil, permite a importação da ibogaína apenas para pesquisa clínica.
Três grandes estudos já foram concluídos, com resultados animadores. Um laboratório já prepara a documentação para pedir o registro da ibogaína.
O R7 entrevistou o médico e pesquisador Bruno Rasmussen sobre os avanços na pesquisa e os detalhes do tratamento com a ibogaína. Ramussen também faz um panorama sobre a medicina psicodélica.
R7: Há quanto tempo o senhor pesquisa e participa de grupos de pesquisas para um tratamento de dependência química?
Bruno Rasmussen: Há 23 anos, mas de forma independente. Em conjunto com outros pesquisadores, desde 2012.
R7: Quando começaram os estudos com a medicina psicodélica?
Bruno Rasmussen: Os estudos acadêmicos mais importantes, dos relacionados à ibogaína, começaram em 2012, através de uma equipe composta pelo psiquiatra Dartiu Xavier, do PROAD da UNIFESP; Eduardo Schenberg, neurocientista; Maria Angélica Comis, psicóloga; e eu, médico clínico. Este estudo, foi publicado em 2014 no Journal of Psychopharmacology.
R7: Quais os resultados?
Bruno Rasmussen: Nessa época pacientes que haviam tomado ibogaína para dependência química, no período de 2005 a 2013, foram entrevistados e acompanhados, e chegou-se a um resultado de 62% de pacientes abstinentes após o tratamento. Além disso, observamos que a ibogaína, aplicada dentro dos padrões adequados de segurança clínica, em ambiente hospitalar, é efetiva e segura, tendo total ausência de eventos adversos importantes.
Estes resultados inclusive levaram à publicação de enunciados do Coned-SP (Conselho Estadual de Políticas Sobre Drogas do Estado de SP – texto abaixo) que estipulavam que o tratamento com ibogaína deve ser necessariamente realizado em ambiente hospitalar, com acompanhamento médico, psiquiátrico e psicológico.
R7: Houve outros avanços?
Bruno Rasmussen: Depois disso, fizemos outra pesquisa, um estudo qualitativo, com participação, além dos profissionais citados anteriormente, do psiquiatra Luis Fernando Tofoli, da Unicamp, e do João Felipe Alexandre, da UFABC, que mostrou uma grande melhora na qualidade de vida após o tratamento com a ibogaína, mesmo em pacientes que chegaram a recair, com episódios mais breves e menos profundos de recaída. Este segundo estudo foi publicado agora em abril de 2017 no Journal of Psychedelic Studies. Temos ainda um terceiro estudo, da mesma equipe, sobre o mesmo assunto, que está em vias de publicação, que mostra resultados semelhantes.
Em relação ao MDMA, participo de outro grupo que está em fase de treinamento para realizar uma pesquisa sobre o uso da substância em pessoas com transtorno de estresse pós-traumático. Essa pesquisa está ocorrendo de forma coordenada em outros locais do mundo, principalmente nos Estados Unidos, e deve começar aqui no Brasil nos próximos meses.
Outros estudos, com Ayahuasca, têm sido realizados na USP de Ribeirão Preto e na UFRN, para depressão, e ocorreram nos últimos anos também. Mas não tenho vínculo com estes últimos.
R7: Quais as substâncias que já estão em estudo no Brasil?
Bruno Rasmussen: Em termos de medicina psicodélica, a Ayahuasca, para depressão; ibogaína, para dependência química; e o MDMA, para transtorno de estresse pós-traumático. O Brasil tem se mostrado forte nesse tipo de pesquisa, como ficou claro na conferência da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), realizada em abril passado, em Oakland, com a presença de mais de 3.000 pessoas, onde várias palestras foram de brasileiros, inclusive eu.
R7: Como o senhor avalia o resultado no grupo de voluntários?
Bruno Rasmussen: Em relação à ibogaína, avalio os resultados como excelentes. Nenhuma abordagem atual oferece resultados comparáveis e, o mais interessante, em tão pouco tempo, pois a maioria dos pacientes que tomam ibogaína necessitam de apenas uma dose, que é aplicada durante uma internação hospitalar que dura 24 horas.
Quanto à Ayahuasca e depressão, ótimos resultados também, e com a mesma característica, resultados muito rápidos. Quanto ao MDMA, no Brasil a pesquisa ainda está em fase inicial, mas pude acompanhar alguns pacientes que fizeram esse tratamento nos EUA, para stress pós traumático (no caso, veteranos de guerra), e os resultados também foram muito bons. Em 82% dos casos, após 3 sessões os pacientes não preenchiam mais os critérios para o transtorno.
R7: Quanto tempo demora um tratamento convencional de dependência química sem a ibogaína?
Bruno Rasmussen: Alguns meses, na maioria das vezes cerca de 9 meses, com uma taxa de recaída maior do que 70%.
R7: No caso da Ibogaína, especificamente, como está a tramitação na Anvisa para que seja permitido o uso medicinal da planta?
Bruno Rasmussen: Bem, no caso da ibogaína, o uso da planta in natura, apesar de ser a maneira tradicional de uso, não é tão interessante, pois inúmeras variáveis (tipo da planta, solo, clima, modo e tempo da colheita) podem influenciar na pureza e no resultado. Assim sendo, é mais seguro e com resultados mais previsíveis se for usada a substância extraída e purificada, que se chama ibogaína HCL. Essa substância, apesar de ainda não registrada na Anvisa, pode ser importada para uso pessoal, não comercial, por iniciativa do próprio paciente, segundo o decreto 8.077, de agosto de 2013, e uma resolução 28/2011, da Anvisa.
Para desburocratizar esse processo de importação, seria importante que a medicação fosse registrada no Brasil, o que é um processo longo e cheio de burocracia, mas tenho confiança de que a médio prazo isso aconteça, pois esse trâmite já está em andamento.
R7: Como é que funciona a Ibogaína no tratamento da dependência química?
Bruno Rasmussen: A ibogaína aumenta a fabricação, por células cerebrais chamadas células gliais, de um fator chamado GDNF (Glial Cell-Derivated Neurotrophic Factor). Ele é considerado um fator de crescimento neuronal, que faz com que os neurônios se proliferem e conectem ou reconectem entre si. Este efeito aparentemente reequilibra os neurotransmissores (dopamina, serotonina) e traz uma sensação de bem-estar sustentada, o que diminui a necessidade do uso de drogas pelo paciente.
Além disso, durante o efeito da ibogaína, o paciente entra num estado chamado de onirofrenia, que é o “sonhar acordado”, um momento de expansão de consciência em que a pessoa consegue reavaliar atitudes, sentimentos, onde ela tem insights relacionados aos seus problemas. Isso acaba funcionando como uma “psicoterapia” intensiva, concentrada, induzida pela medicação, e é bem eficiente no sentido de aumentar a compreensão pelo paciente do problema que ele está enfrentando.
R7: O paciente corre algum risco de se tornar dependente químico da ibogaína?
Bruno Rasmussen: Não, a experiência com a ibogaína não é agradável, não dá prazer, não existe nenhum caso relatado de uso de ibogaína com fins de recreação.
R7: Existem níveis diferentes de dependentes de crack? Nas suas pesquisas o senhor já detectou algum perfil de uso controlado de crack ou em todos os casos o usuário acaba caindo num dependência severa após uma período de uso do crack?
Bruno Rasmussen: Em relação a qualquer droga, inclusive o álcool, existem sempre pacientes que abusam mais do que os outros, e também sempre têm pessoas que conseguem fazer um uso menos nocivo ou mais controlado. Isso também ocorre em relação ao crack. Mas é menos comum do que em relação à cocaína ou álcool por exemplo. Mas não são todos os usuários de crack que viram “zumbis”, como se acredita.
R7: Há muitos casos de recaída e de múltiplas internações de dependentes químicos. Com a medicina psicodélica, o risco de recaída é menor? É necessário um longo período de internação para o tratamento com a medicina psicodélica ter o efeito necessário?
Bruno Rasmussen: Essa é a grande vantagem da medicina psicodélica, é o tempo de resposta. Sempre muito rápido, em uma ou no máximo algumas sessões, já se vê o resultado. No caso da ibogaína, como já disse, na maioria das vezes, é uma dose única. E a internação é necessária por um período muito curto, apenas durante a aplicação do medicamento.
Eventualmente, alguns pacientes podem necessitar de um período internação de uns 30 dias, anteriores à aplicação, para se prepararem melhor, para ter um apoio com a retirada de alguns medicamentos que devem ser descontinuados antes da tomada da ibogaína e de outras substâncias, para evitar interações medicamentosas indesejávei. Mas sempre esse período de internação vai ser muito menor do que nos tratamentos tradicionais. E é isso que faz com que a “indústria” da dependência clínica não goste da ibogaína, e difunda informações deturpadas, pois comercialmente não interessa um medicamento que diminua o tempo de internação.
Além disso, como mostra o segundo trabalho que realizamos, as recaídas após a ibogaína são mais curtas, menos profundas e com retomada mais rápida da vida normal.
R7: O psicólogo espanhol Genis Onã, que também faz estudos com a medicina psicodélica, fala da importância de um processo psicoterapêutico para acompanhar o tratamento e que o uso das substâncias psicodélicas atuam como coadjuvantes e não como tratamento principal. O que o senhor acha disso e como deve ser a preparação e a avaliação do paciente antes de começar o tratamento.
Bruno Rasmussen: Concordo com ele 100%. A ibogaína e as outras substâncias podem ser consideradas facilitadores da psicoterapia e, sem esta, não há o que ser facilitado, então a eficácia cai muito. A ibogaína não é um milagre, é uma ferramenta que juntamente com outros procedimentos, aumenta a chance do paciente voltar a ter uma vida normal. Mas não adianta chegar e tomar ibogaína, sem um acompanhamento adequado, o resultado vai ser frustrante.
R7: Como seria esse acompanhamento adequado?
Bruno Rasmussen: A preparação deve consistir em algumas consultas com um psicoterapeuta, para explicar ao paciente o que vai acontecer durante a experiência, adequar as expectativas da pessoa à realidade, e se diagnosticar eventuais co-morbidades (doenças que a pessoa possa apresentar, além da dependência), que possam ser contra indicações ao tratamento (esquizofrenia, por exemplo). E depois da tomada, é importante também um seguimento, para ajudar a pessoa a “digerir” a experiência e se preparar para retomar a vida normal.
Além disso, é importante uma avaliação médica também, para se ter certeza de que o paciente não tem doenças cardíacas, renais, hepáticas, que possam comprometer a segurança ou a eficácia da medicação.
Anvisa x Ibogaína
Uma proposta de mudança nos procedimentos da Anvisa pode acelerar a liberação do uso da ibogaína no País. A Diretoria Colegiada da Anvisa aprovou, na última terça-feira (25), consulta pública para regulamentação de priorização de análise de petições de registro e pós-registro de medicamentos.
A proposta estabelece critérios objetivos para o enquadramento da priorização de análise por parte da agência, dando ênfase ao acesso das pessoas a um desfecho terapêutico relevante e à melhoria significativa da segurança, da eficácia ou da adesão aos tratamentos.
De acordo com o diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, “trata-se de um aperfeiçoamento da antiga regra de priorização (Resolução RDC 37/2014), em que fica mais enfatizada a simplificação dos critérios de priorização e um foco fundamental na garantia do acesso naqueles medicamentos que, por ventura, se destinarem a grupos de doenças que não têm alternativa terapêutica ou que não tenham alternativa terapêutica adequada”.
R7