As novas regras para a doação de órgãos no Brasil, que entraram em vigor nesta quinta-feira (19), vão facilitar os procedimentos para transplantes no País, segundo especialistas entrevistados pelo R7.
Eles divergem, no entanto, quanto ao fim da exigência de que somente neurologistas podem atestar a morte encefálica — a partir de agora, médicos de outras especialidades podem confirmar o óbito.
O Decreto 9.175 de 2017 retirou da legislação sobre transplante de órgãos a chamada “vontade presumida”, estabelecida na lei 9.434 de 1997 — segundo a qual todo brasileiro era considerado um potencial doador de órgãos, exceto se registrassem o contrário no documento de RG.
Na prática, o texto traz poucas mudanças, já que alterações feitas na legislação em 2001 condicionavam a doação de órgãos à autorização expressa da família.
“Essa lei [de 1997] era revolucionária e atá trazia a questão da vontade presumida. Houve campanha forte e uma emenda na norma, em 2001, modificou ela por completo, retirando a possibilidade de vontade presumida”, diz o professor de biodireito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Carlos Eduardo Nicoletti Camillo.
Ao retirar de vez a expressão, a legislação ficou mais clara, diz o presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), o médico nefrologista Roberto Ceratti Manfro.
— Na prática, já não se praticava isso, mas na portaria anterior não tinha ficado bem explicitado.
A principal mudança do novo decreto, segundo os entrevistados, é a possibilidade agora de o companheiro da pessoa com morte encefálica poder autorizar a doação de órgãos. Antes, somente pais, filhos ou irmãos do falecido poderiam liberar a doação.
O professor de bioética afirma que, antes mesmo do decreto, companheiros já poderiam autorizar a doação, por interpretação da Constituição de 1988. Ele admite, no entanto, que a redação anterior poderia dar espaço para má-interpretação. “O decreto deixa claro o que sempre foi possível”, diz.
Manfro, da ABTO, lembra que a decisão para aproveitar um órgão doado deve ser tomada rapidamente pelo médico. Com a garantia de que o companheiro pode autorizar o procedimento, esse processo fica ainda mais seguro.
— Havia situações em que um companheiro não podia autorizar, mas o filho podia. O companheiro não poder participar da decisão é injusto. A pessoa teoricamente poderia ter dito para o companheiro que quer ser doadora, mas não para o filho. O decreto evita esse tipo de conflito.
O ponto de discórdia entre os especialistas é a mudança com relação ao neurologista, que anteriormente era o único médico habilitado para atestar a morte encefálica — abrindo caminho, assim, para a doação dos órgãos. A neurocirurgiã do Hospital BP — A Beneficência Portuguesa de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia Vanessa Holanda vê a mudança como algo perigoso.
— O recomendado é que o exame para detectar a morte encefálica seja feito por, pelo menos, um neurologista ou neurocirurgião e um intensivista [médico que cuida de pacientes em estado crítico que precisam de cuidados intensivos]. Por isso, é necessário que haja investimento para formar devidamente outros profissionais para atestar essas mortes.
A especialista diz acreditar que pouco deve mudar nos grandes centros, os quais devem continuar atestando as mortes com profissionais capacitados. Mas afirma que a mudança pode ajudar em locais remotos, que não dispõe de especializados.
— Acredito que a mudança é para facilitar a demanda de doação de órgãos em locais que não têm neurocirurgião, neurologista ou intensivista. Mas é importante priorizar a formação do profissional para que essa confiança nos profissionais não seja quebrada. Se um caso for diagnosticado erroneamente, vai colocar todo o sistema em risco.
Para o presidente da ABTO, não há risco para o médico de outra especialidade atestar a morte encefálica. Este inclusive foi um pedido do Conselho Federal de Medicina, que possui um protocolo para o procedimento.
— Em determinadas situações ou regiões, não há a disponibilidade desse tipo de especialista [o neurologista]. Mas um médico treinado que siga o protocolo do CFM é capaz de fazer o diagnóstico.
Manfro diz ainda que, no Brasil, a morte encefálica é confirmada por dois procedimentos: o exame clínico (que agora pode ser feito por médico de qualquer especialidade) e o exame de imagem, que identifica atividade elétrica cerebral.
— O diagnóstico se mantém totalmente seguro e vai facilitar [a doação de órgãos] nos locais onde não existe esse tipo de profissional.
O Ministério da Saúde afirma que o Brasil possui o maior sistema público de transplantes no mundo e que, atualmente, cerca de 95% dos procedimentos do País são financiados pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Em números absolutos, o Brasil é o 2º maior transplantador do mundo, atrás apenas dos EUA.
Um único doador por salvar várias vidas. Podem ser doados coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões de doadores mortos. Já de doadores vivos, é possível retirar um dos rins, parte do fígado ou do pulmão e medula óssea.
O Brasil possui, de acordo com o Ministério da Saúde, 27 centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos, além de 14 câmaras técnicas nacionais, 506 centros de transplantes, 825 serviços habilitados, 1.265 equipes de transplantes, 63 bancos de tecidos, 13 bancos de sangue de cordão umbilical públicos, 574 comissões Intra-hospitalares de Doação e Transplantes e 72 organizações de Procura de Órgãos.
R7