O motoqueiro, lá em Nova Hartz, no Rio Grande do Sul, na sexta-feira passada, Sexta Santa, ia passando por um certo lugar e notou uma multidão assistindo passiva a um grupo de meliantes fantasiados em soldados romanos – como se fantasiavam as pessoas nos antigos carnavais – que se esmeravam em flagelar um moço cabeludo, parecendo hippie, com o corpo nu. O bando o havia prendido a uma cruz, sobre um monte de pedras e ofendia, cuspia, espancava e quando um dos fantasiados ia enfiar a lança no peito do moço e ninguém fazia nada, só olhando, como se estivessem numa sala de cinema assistindo a uma saga hollywoodiana ou na sala de casa assistindo passivo ao Jornal Nacional, o rapaz pulou o monturo e com o capacete que costuma usar para se proteger quando dirige sua moto, saiu dando porrada a torto e a direita. Era preciso defender aquela pessoa que estava sendo admoestada por um bando e ele não admitia injustiça – se ainda fosse um contra um. Se o rapaz cabeludo estivesse solto, podendo se defender e atacar. Se ainda fosse só umas ofensas… mas enfiar espinho na cabeça e enfiar a lança em alguém sem condições de defesa, aí era demais.
Já saiu dando tacles, mata-leão e foi capacete de motociclista batendo para todos oslados e o primeiro que recebeu a cacetada foi o tal do centurião que levava a lança em direção ao peito do rapaz preso na cruz e foi uma capacetizada tão certeira que o agressor do cabeludo já foi catando fichae chamando pelos outros que vieram e também receberam seu quinhão. O motociclista ficou esperando que a multidão que a tudo assistia saísse em sua defesa e também corresse para soltar o rapaz da cruz e ainda tinha mais dois outros presos também em cruzes.
Mas, qual não foi sua decepção quando viu que o povo à tudo assistia, filmava e fazia selfie, e enquanto isso vinham mais soldados romanos, outros soldados que pareciam ser da Polícia Militar – que no Rio Grande do Sul são chamados de brigadianos–e mais uns homens de camisetas pretas de uma tal fação chamada Produção, e apareceram assessores, diretores e tanta gente para lhe atacar e assim continuarem a impingir violência contra o rapaz cabeludo que estava preso na cruz, e quase que foi afogado no meio de tantos tapas, rasteiras e empurrões.
Ele então olhou para a multidão, sem largar seu capacete de motociclista e viu que o povo lá embaixo continuava olhando como se fosse normal. E notou que muitos olhava para ele com ódio, por ter tentado acabar com aquela farra violenta. Ouviu quando alguém o chamou de maluco e que pediam que fosse levado preso. Preso? Justamente ele que estava tentando defender uma vida? Logo ele que subira na altura, pulara a cerca para salvar a vida de um desconhecido que estava sendo lanhado por um bando de marginais fantasiados de soldados romanos?
Antes de ser levado para a viatura da polícia só teve um pensamento: o mundo está perdido. E lembrou que a situação tende a piorar, pois se o Papa Francisco que é unha e carne com Deus disse que não existe inferno, aí é que o mundo vai perder a bride, o freio. E foi pensando enquanto ia sendo levado para o Distrito Policial: agora é que Gilmar Mendes, Toffoli, Rosa, Marco Aurélio, Barroso e todos os outrosendemoniados do STF darão Habeas Corpus a Lula. E pensou mais alto: “Lula então não vai para o inferno, se não tem inferno..”. E lembrou que nem Aécio, nem Temer, nem Geddel e família, muito menos Sarney, Trump, Putin.
– Então, se não tem inferno, cada um desses é o diabo e o purgatório é aqui – desabafou enquanto limpava uma lágrima se lamentando por não ter conseguido salvar o moço cabeludo que estava na cruz sendo violentado pela turba.
– O mundo está cada vez mais violento – falou baixinho como se falasse com o capacete. “E não tem inferno”.
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Jolivaldo Freitas é jornalista e escritor