O governo federal lançou nesta quarta-feira (25) edital no valor total de R$ 87,3 milhões para a contratação de entidades privadas que acolhem pessoas que sofrem com a dependência de álcool e outras drogas, as chamadas comunidades terapêuticas. O objetivo é contratar 7 mil vagas capazes de atender a cerca de 20 mil pessoas por ano, em todas as regiões do país. O programa é uma iniciativa interministerial que envolve o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad); o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS); o Ministério da Saúde; e o Ministério do Trabalho. Um comitê gestor, formando por quatro representantes de cada pasta, acompanhará a execução da política pública.
Segundo o edital, essas comunidades são descritas como entidades sem fins lucrativos “que realizam o acolhimento exclusivamente voluntário, em regime residencial transitório, de pessoas com transtornos decorrentes da dependência de substâncias psicoativas”. Segundo o titular da Senad, Humberto Vianna, a internação é voluntária e gratuita e o paciente poderá deixar o tratamento quando quiser. Serão repassados para as entidades um valor de R$ 1.172,88 de mensalidade por pessoa adulta acolhida; R$ 1.596,44 para o atendimento de adolescente; e R$ 1.528,02 pelo serviço de acolhimento de mãe nutriz, que poderá fazer o tratamento acompanhada do filho que tenha até um ano de idade.
“O que nós temos é uma grande procura por esse método de acolhimento. A taxa de ocupação é de quase 100%, o que fez então nós percebermos a necessidade de ampliar a rede para esse tipo de atenção”, justifica o médico Quirino Júnior, coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde. Ele explica que o encaminhamento para este tipo de tratamento, além de voluntário por parte do paciente, vai requerer, obrigatoriamente, autorização médica.
Segundo o ministro do Desenvolvimento Social, Alberto Beltrame, o tempo máximo de permanência do paciente não poderá ultrapassar 12 meses. “Em média, o paciente fica internado por quatro meses, mas o limite é até o limite de um ano. Os R$ 87 milhões terão capacidade de contratar em torno de 7 mil leitos. Mantendo uma lógica de rotatividade de três usuários por leito, em torno de 20 mil vagas serão oferecidas ao longo de um ano. Nós estamos quase dobrando a capacidade de contratação e a quantidade de pessoas atendidas [em relação a editais anteriores]”, aponta.
O edital prevê que as comunidades terapêuticas possam apresentar diferentes metodologias de tratamento, incluindo laborterapia (que é trabalhar na manutenção do local), psicoterapia em grupo ou individual, programa dos 12 passos (criado inicialmente para tratamento do alcoolismo), atividades espirituais, ações pedagógicas e grupo operativo. Em relação aos editais anteriores, o diretor de Articulação e Projetos da Senad, Gustavo Camilo, afirma que foi ampliada a exigência de equipe habilitada contratada pela entidade, além de um melhor detalhamento do plano terapêutico.
Entre as regras exigidas para o credenciamento das entidades, está a de manter uma equipe multidisciplinar, com três profissionais com diferentes graduações, nas áreas de ciências sociais, humanas ou de saúde, com comprovada experiência profissional na área de dependência química. Nos casos de comunidades terapêuticas que acolham adolescentes, será necessário manter equipe multidisciplinar, contendo um psicólogo, um pedagogo e três monitores.
Fiscalização das comunidades
Segundo o ministro da Saúde, Gilberto Occhi, após o credenciamento das entidades, o governo fará uma fiscalização prévia das condições de cada uma das comunidades terapêuticas selecionadas. Ele admite, no entanto, que o governo, apesar de outros editais já realizados, não tem dados sobre a efetividade neste tipo de tratamento.
“Temos que acompanhar se a modalidade de tratamento, se está tendo sucesso ou não. Nosso objetivo é que a cada transição, de pessoa que entra e sai, ela não volte a ter uma recaída e possa se inserir novamente dentro da sua comunidade”, explica. “Nós não estamos defendendo que [este tratamento] é mais eficaz, estamos reconhecendo o trabalho feito por essas comunidades terapêuticas em todo o país e, por isso, decidimos usar parte do dinheiro do governo federal para apoiar esse trabalho. O resultado desse trabalho será feito ao longo do período”, garante o ministro.
Sobre as denúncias de maus-tratos e violações de direitos humanos em comunidades terapêuticas, como ocorreu após inspeção feita o ano passado pelo Conselho Federal de Psicologia em 30 instituições de dez estados e do Distrito Federal, o secretário nacional de Políticas sobre Drogas garante que a triagem do edital vai evitar esse tipo de ocorrência nos contratos do governo federal. “Muitas dessas comunidades que são identificadas com irregularidades não são aquelas contratadas pelo governo federal. A credibilidade e condição técnica são questões exigidas no edital”, afirma Humberto Vianna.
Modelo controverso
Especialistas ouvidos pela Agência Brasil discordaram do modelo baseado em internamento. “Essa política está remando contra o que se prevê como melhor modelo de cuidado para as pessoas dependentes químicas, que é o cuidado fora de instituições fechadas, e não em locais de longa permanência, historicamente reconhecidos por violações de direitos”, critica a professora Andrea Galassi, coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília (UnB). A psicóloga Jereuda Guerra, conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), também condena o tratamento de dependentes químicos baseado nesse tipo de comunidade terapêutica.
“A partir de 2001, através da Lei 10.216, que tratou da reforma psiquiátrica, ficou estabelecido que o Brasil romperia com a lógica manicomial, com a lógica trancafiadora, excludente que são as comunidades terapêuticas. Eu estive nessas entidades fazendo extensão, e na maioria das regiões do país são comunidades muito baseadas em prescrições religiosas que não apresentam fundamentação científica, além de proporem um longo período de internação”, descreve.
Para a psicóloga, há um “complicador” nessa forma de tratamento, que é retirar o paciente do convívio familiar. “O problema da dependência química não é individual, ele está relacionado ao ambiente social e, muitas vezes, de um ambiente familiar que não está legal, que também não está saudável, mas apenas essa pessoa passa a ser apontada como o problema. Isso não é recomendável do ponto de vista terapêutico, a pessoa ser punida pela internação”, acrescenta. Segundo a conselheira do CFP, na maioria das comunidades terapêuticas que ela visitou, a internação durava mais de nove meses, afastando o paciente de suas relações sociais, familiares e afetivas.
Segundo Gustavo Camilo, da Senad, o modelo terapêutico dessas comunidades de fato prevê que “a pessoa tenha que se afastar dos fatores de risco [da dependência química], por isso um certo isolamento é necessário”, argumenta.
Entidades religiosas
De outro lado, a professora Andrea Galassi, da UnB, diz que o governo deveria focar suas ações a partir da rede pública do Sistema Único de Saúde, principalmente por meio dos centro de Atendimento Psicossocial (Caps). “Como é que se pode achar razoável investimento em instituições que são privadas, de vocação religiosa, em detrimento do investimento em nosso sistema público universal?”, questiona.
Para o ministro da Saúde, no entanto, o governo está diversificando a oferta de tratamentos. “É um apoio complementar, não estamos abandonando nenhum outro atendimento que o próprio SUS faz”, argumenta.
Segundo o presidente da Confederação Nacional das Comunidades Terapêuticas (Confenact), Egon Schluter, a maioria das entidades privadas que tratam dependentes químicos no país são, de fato, comunidades religiosas, com predominância das instituições evangélicas, em primeiro lugar, e de católicas e espíritas em segundo e terceiros lugares, mas nenhum paciente é obrigado a seguir o tratamento baseado em culto espiritual.
Schluter reconhece ainda que muitas instituições do gênero acabam prestando um “desserviço”, com tratamentos inadequados que violam direitos humanos, mas não são as que serão contempladas com recursos públicos. “Esses abusos acontecem em clínicas que se dizem comunidades terapêuticas para fugir da legislação. As comunidades financiadas pela Senad e as que têm convênios com os estados, estas estão fora dessa lista”, assegura. Ao todo, segundo da Confenact, existem atualmente cerca de 2 mil comunidades terapêuticas em todo o país, e que atendem mais de 60 mil pessoas.
Agência Brasil