Quando a aula terminou, João* esperou todos os colegas deixarem o colégio para se aproximar da caixa de denúncias, localizada em meio ao pátio da Escola Estadual Sérgio Murillo Raduan, no Jardim Varginha, em São Paulo. Rapidamente, escreveu em um papel “não falo porque meus colegas debocham do meu sotaque” e foi embora. Minutos depois, a denúncia chegou ao professor Joel Teles, coordenador do projeto Professor Mediador Comunitário. “Ler aquela denúncia me tocou profundamente, até porque sou professor de português e preciso incentivar o debate sobre a inclusão linguística”, afirmou.
O relato motivou Teles a fazer palestras sobre as variações linguísticas do País para todas as turmas que leciona. “Quando cheguei na sala, percebi que ele estava quietinho, sentado num canto isolado”, diz. “João veio do Nordeste e por ter um sotaque diferente era sempre alvo de gozações”, lembra. “Toda escola tem bullying e o pior tipo de perseguição é aquela que ocorre de maneira velada, dentro do banheiro, depois da aula, em situações escondidas.”
Uma publicação organizada pelo Instituto Península, com apoio da Escola de Educação da Universidade de Harvard,apontou os 22 dilemas vividos por professores, diretores e coordenadores em todo o País. Entre eles, o bullying e o cyberbullying ainda aparecem como uma das práticas mais cruéis dentro das salas de aulas. “Essa prática é um dos fatores que leva ao suicídio. São jovens que estão em processo de formação, buscando a construção da identidade e que se deparam com formas cruéis de violência verbal ou física”, afirma Karen Scanvacini, fundadora e coordenadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Pósvenção do Suicídio.
As práticas de bullying envolvem, normalmente, a figura de um agressor, da vítima e de espectadores. Além disso, se caracterizam pela repetição dos atos. “Brigas pontuais não constituem o bullying”, diz Karen. No dia 6 de novembro de 2015, o governo sancionou a lei que institui o Programa de Combate à Intimação Sistemática, que classifica como bullying ataques físicos, insultos pessoais, comentários sistemáticos e apelidos pejorativos, ameaças, expressões preconceituosas e isolamentos premeditados.
Mesmo com a legislação em vigor, muitas instituições ainda têm dificuldades em criar mecanismos de combate à prática. “Os questionamentos aumentaram, as escolas têm se preocupado, mas ainda estão longe do patamar ideal”, afirma Karen. “É preciso entender que existem outros caminhos além da capacidade financeira. As campanhas realizadas pelos próprios alunos têm tido efeitos muito positivos.”
Perseguição, humilhação e suicídio
No início do ano, três casos de suicídio em escolas particulares de São Paulo mostraram que o problema ainda está distante de ser solucionado. Em abril, dois alunos do ensino médio do Bandeirantes, um dos mais tradicionais da cidade, se suicidaram. No mesmo mês, o Colégio Agostiniano São José, na zona leste de São Paulo, informou que houve um suicídio na instituição.
Para evitar que tragédias como essas se repitam, professores e alunos começaram a pensar em novas estratégias para identificar e coibir o bullying. No caso do estudante do Jardim Varginha, as palestras sobre variação linguística ajudaram João* a adquirir confiança e se soltar em sala de aula. Na mesma escola, mais dois casos chamaram a atenção do professor Teles, que passou a ter um controle mais rígido sobre todos os possíveis comportamentos que poderiam vir a se tornar bullying.
“Tive um aluno travesti que queria participar do campeonato de futebol na equipe das meninas”, diz Teles. “Ele foi alvo de diversos comentários preconceituosos e agressões verbais.” Para resolver o embate, Joel realizou uma assembleia entre toda a turma. “Coloquei o fato para ser debatido, ela explicou porque queria jogar no time das meninas e, para a minha surpresa, todos concordaram. Só assim, as ofensas pararam.”
O estudo traz o caso do estudante Pedro. Aluno de uma escola de grande porte localizada no sul do País, o jovem enfrentou em silêncio uma situação de humilhação.
Durante a aula, Pedro pediu para ir ao banheiro e a professora ignorou. “Ele levantou a mão novamente e ela respondeu gritando. A classe toda riu. Pedro não falou mais nada, porém os colegas ficarem inquietos”, diz o relatório.
“Alguns disseram, que cheiro é esse, professora? Será que foi o Pedro? Antes que ela respondesse, o sino tocou e todos saíram apressados, menos Pedro, que esperou sentado a sala ficar vazia para ir embora. Isso se repetiu por mais dois dias consecutivos.”
Segundo o documento, a coordenadora ligou para a mãe do aluno para dizer que a situação teria ficado insustentável em função da “rebeldia” do garoto. Ao chegar na escola e relatar o problema para a diretora, ela optou por fazer uma assembleia para ouvir os relatos da professora, da mãe e de outros professores de Pedro.
Estratégias contra o bullying
A primeira etapa para enfrentar as práticas de intimação sistemática é, segundo os especialistas, reconhecer a existência do problema. “Não se pode ignorar os fatos, é preciso ouvir as partes envolvidas, a vítima primeiro, depois o agressor e por fim, ambas as partes juntas”, diz Karen. “Muitas vezes, a agressão é uma válvula de escape para algum tipo de violência que o agressor já tenha enfrentado anteriormente.”
Para a especialista, o agressor deve passar por algum tipo de consequência: um trabalho na escola ou, dependendo do caso, uma medida mais punitiva, como advertência. Alguns profissionais como inspetores e outros funcionários são consideradas pessoas chaves no combate ao bullying. Na Escola Estadual Professor João Cardoso dos Santos, em Mogi das Cruzes, a diretora Mônica Cristina de Moura Oliveira afirma que os inspetores têm por hábito observar o comportamento dos alunos durante os intervalos.
Outra prática, no entanto, parece ainda mais promissora. Por meio de uma parceria com o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), 15 estudantes discutem como combater o bullying. “Esses alunos começaram a fazer palestras nas salas e fizeram cartazes nos corredores e agora em julho vão começar a fazer outras atividades”, diz Mônica. “Aluno com aluno se entende melhor. Estudantes que tiravam sarro dos outros já estão mudando de postura”, afirma. “Mas acredito que o resultado será melhor percebido no ano que vem, com mais atividades envolvendo, inclusive, os pais.”
Cyberbullying
Se até alguns anos as perseguições eram restritas às salas de aula e ao pátio do colégio, hoje, a intensificação do uso das redes sociais fez com que o cyberbullying emergisse com força entre escolas públicas e privadas. Na escola em que o professor Teles atua, um grupo de alunos conversava nos corredores sobre uma aluna que teria tido fotos íntimas divulgadas na internet. “Passando pelo pátio, ouvi comentários e chamei o namorado dela para conversar”, diz o professor.
“Depois, chamei a mãe dela e a orientei a fazer um boletim de ocorrência. Passei em todas as salas e orientei os alunos sobre o que ocorre em situações semelhantes. Infelizmente, a mãe dela preferiu tirá-la da escola”, disse. “Agora, estamos bem cautelosos com o uso do celular.”
Segundo Karen, os adolescentes não possuem maturidade para mensurar os efeitos das informações vazadas na internet. “Os pais ainda não estão envolvidos na questão do cyberbullying”, diz ela ao explicar que a prevenção deve ser voltada a todos os públicos. Teles criou um grupo de Whatsapp com os pais dos estudantes para ter uma forma de comunicação direta com os familiares.
Com a mudança, o professor afirma que os alunos perceberam que o assunto deixou de ser um tabu na escola. “Eles adquiriram confiança e perderam um pouco do medo”, diz Teles. “Os pais agradeceram a iniciativa, mas o próximo passo será, assim que eles voltarem de férias, eles próprios começarem a fazer palestras para os colegas. De adolescente para adolescente funciona melhor.”
* João é um nome fictício utilizado pela reportagem para proteger a identidade do aluno vítima de bullying.
R7