Enquanto o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), promete a fiéis cirurgias de catarata em “uma ou duas semanas” caso procurem sua assessora Márcia, outros pacientes na cidade aguardam bem mais: oito meses só para a primeira consulta.
A estimativa média, de 239 dias de espera, é da própria prefeitura, que tem como meta até 2020 realizar 75% das consultas e exames em 90 dias. A demora é ainda mais longa quando se trata de consultas oftalmológicas pediátricas ou para glaucoma (aumento da pressão ocular) — 449 dias e 463 dias, respectivamente.
A fila da saúde era uma das principais bandeiras de campanha de Crivella em 2016 e está no centro de uma polêmica que quase levou o prefeito à berlinda na última semana, quando vereadores de oposição se organizaram para votar um processo de impeachment. Ele foi barrado na quinta (12) por falta de votos.
A articulação começou após o vazamento de áudios do prefeito durante uma reunião a portas fechadas com 250 pastores e líderes evangélicos. No evento, Crivella ofereceu ajuda para encaminhar fiéis a cirurgias de catarata, tratamentos de varizes e vasectomias, além de outros benefícios.
“É só conversar com a Márcia que ela vai encaminhar, e daqui a uma semana ou duas eles estão operando”, disse o bispo licenciado em diálogo divulgado pelo jornal O Globo.
A fala gerou críticas da oposição e levantou a suspeita de que o prefeito estaria favorecendo um grupo religioso em detrimento da população —o que pode configurar improbidade administrativa. Na rede pública da cidade, há relatos de pessoas que aguardam a cirurgia de catarata, considerada simples, há dois anos.
A reportagem conversou com uma paciente que espera pelo procedimento desde 2016 e uma agente comunitária da favela da Maré que tenta marcar desde janeiro um exame simples para mudar o grau dos seus óculos, sem sucesso. Ambas pediram para não terem seus nomes divulgados por medo de serem prejudicadas na fila.
Apesar dos esforços da gestão com medidas como o mutirão da catarata —que contratou 2.571 cirurgias desde abril e pretende zerar a demanda na cidade— e o Corujão Carioca —que faz cirurgias à noite e nos fins de semana, replicando o programa do ex-prefeito de São Paulo João Doria (PSDB)—, o problema continua distante do fim.
Um total de 193 mil pessoas estavam na fila para conseguir agendamento de consultas, exames e cirurgias eletivas em julho de 2017, segundo uma auditoria do TCM (Tribunal de Contas do Município) divulgada nesta semana.
O clínico geral Igor Saffier, que pesquisou a fila em uma unidade de saúde em 2017, critica a estratégia de mutirões da atual gestão. “São ações válidas para tentar desafogar a fila, mas não vão resolver. É preciso investir na estrutura da saúde básica”, diz.
A forma como o Sisreg (Sistema de Regulação) é gerido também está entre as principais críticas a Crivella. O sistema é usado por profissionais da saúde para marcar todos os procedimentos para a população que busca atendimento nas redes municipal, estadual e federal na cidade.
A recente auditoria do TCM, porém, concluiu que dados do Sisreg não batem com os atendimentos efetivamente realizados, ou seja, parte deles é feita sem registro no sistema —o que pode indicar má gestão ou desrespeito à fila.
Motivados pelo relatório e pelas falas polêmicas de Crivella, vereadores querem agora abrir duas CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) para apurar possíveis fraudes.
Tanto o Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio) quanto a Defensoria Pública do estado criticam a falta de transparência da gestão com relação à fila e dizem não ter acesso ao sistema. Segundo a defensora pública Raphaela Jahara, o acesso era franqueado no governo passado.
O médico Moisés Vieira Nunes, presidente da Amfac-RJ (Associação de Medicina de Família e Comunidade do RJ), reconhece que a complexidade da rede é grande, mas que alguns problemas no Sisreg contribuem para as longas esperas. “Muitas vagas de hospitais estaduais e federais não entram no sistema.”
Além das falhas, existe ainda uma espécie de “fila da fila”, segundo relataram dois servidores da saúde municipal. Na cirurgia de catarata, por exemplo, que é feita na rede privada, quando o paciente consegue marcar uma consulta e é encaminhado ao local, enfrenta uma nova fila.
O presidente do Cremerj, Nelson Nahon, ressalta que a falência do governo do estado e a redução de repasses a hospitais federais em 2017 aumentaram ainda mais a demanda nas unidades municipais, que também enfrentam enxugamento de recursos.
Somente em 2017, primeiro ano da gestão Crivella, houve corte de R$ 543 milhões (10%), nos repasses para Saúde.
A piora do quadro gera um efeito em cadeia. Segundo estudo do Cremerj, 46% dos pacientes que chegam aos hospitais para tratamento de câncer já estão em estágio avançado. “Quem trata é o governo federal, mas quem faz o diagnóstico é a atenção básica do município. Se atrasa no diagnóstico, atrasa também no tratamento”, diz Nahon.
OUTRO LADO
A gestão Marcelo Crivella afirma que chamou, em pouco mais de dois meses, 65% dos pacientes que aguardam na fila de cirurgia de catarata para realizar sua primeira consulta. Foram 8.525 pessoas convocadas de 16 de abril —início do mutirão— até 29 de junho.
Um quarto delas, porém, faltou ao atendimento. No total, a ação já realizou 2.571 operações, o equivalente a 20% da fila da catarata até março, de cerca de 13 mil pacientes.
A respeito de pessoas que dizem esperar há mais de dois anos por uma cirurgia, a prefeitura reitera que é preciso avaliar caso a caso e pede que os usuários procurem uma unidade de atenção primária para que seu cadastro e situação clínica sejam atualizados.
Também lembra que, em 2016, mais de 90 mil solicitações de serviços foram devolvidas pela central de regulação, órgão que avalia se os pedidos são apropriados ou não.
Sobre as suspeitas de fraude no sistema que regula a espera, a Secretaria Municipal de Saúde rebate que não há indícios de que as filas não estejam sendo respeitadas.
A gestão Crivella diz ainda que não procede a informação de falta de investimento em atenção básica, uma vez que sete novas clínicas da família foram inauguradas.
Cita, enfim, a “difícil situação deixada” pela gestão anterior, de Eduardo Paes (DEM), afirmando que herdou um custo anual de R$ 422 milhões sem recursos para cobri-lo.
Bahia Notícias