Os pais, cada um em seu canto, tentavam dar alento, tranquilidade e segurança para os estudantes que chegavam com suas canetas Bic transparentes, com tinta preta e muita tensão, até mesmo nas conversas e no encontro com os colegas. Falava-se de tudo, numa descontração fingida em quanto se esperava a abertura dos portões do antigo Pavilhão de Aulas, em Ondina, da Universidade Federal da Bahia. Aqueles que não aguentavam a espera se espraiavam pelo chão, limitados às paredes. Muitos procurando sublimar o clima,brincando com os cães que vivem na área. Cães afáveis que aceitavam o carinho de todos, como se ali estivessem para oferecer uma sensação de conforto e tranquilidades. Os cães da UFBa merecem o título de psicólogos. Uma cadela magra, mas com os pelos em bom estado circulava levando sua alegria para todos e alguns a rejeitavam, mas ela continuava passiva em sua saga de agradar, como se soubesse que estava ajudando ao estudante fazer uma boa prova.
Os portões abrem e os estudantes entram numa desordem organizada ou numa organização sem ordem, subindo as escadas, a tensão aumentando e muitos já desviam para os sanitários, face a ansiedade; depois de identificados na entrada da sala de provas sentam nas cadeiras de plásticos e sabem que ali ficarão pelo menos quatro horas lendo e respondendo o que sabe, o que deduz e arriscando naquilo que não sabe e nem vai saber e jogam-se os dados, a sorte.
Na sala com ar-condicionado quebrado, janelas emperradas, um ventilador joga seu vento quente para onde é possível e enquanto se espera a hora da distribuição das provas só os conhecidos que por acaso caíram juntos na mesma sala conversam, falam do acaso, dos colegas “somo será que estão”, da família e de traquinagens quase que infantis. Hora da prova e quando chama cada um pelo nome vejo que o menino Adriano, que estava três cadeiras à frente na fila ao lado sumira e ninguém viu. O pessoal do Enem a procura nos corredores, nos banheiros, nas áreas comuns, escadas e ninguém sabe, ninguém viu. Fica um certo mal-estar na sala e era o primeiro dia de prova, o fatídico dia da redação.
Silêncio total na hora da prova, depois de passar por um breve período de identificação, inclusive com assinatura de documento comprobatório de presença e para segurança o uso do dedão com suas digitais par não ter erro (interessante é que a tinta dactiloscópica não suja nem gruda). A prova já começou e o silêncio amplia o nervosismo e o rapaz ao lado tosse, uma tosse nervosa sem parar. A moça do outro lado – que me disse trabalha na área de segurança – come barrinhas de cereais sem cessar. 13 horas. Meia hora após o início das provas e ela já tinha comido 5 barrinhas. Pensei: “vai ter dor de barriga durante ou depois”.
Na linha das cadeiras de frente – e eu fiquei no fundo como os malandros das salas de aulas faziam antigamente e ainda devem fazer – um rapaz balança as pernas como se fosse decolar e ele foi o primeiro a sair da sala, com duas horas de duração da prova. A menina do meu lado que comia as barrinhas pediu para ir ao banheiro. E assim foi se sucedendo e cada gesto mostrava a tranquilidade ou intranquilidade nas respostas dos gabaritos. Uns mordiam a caneta, outros riscavam o caderno de apoio e rascunho, uns olhavam o teto esperando o estalo de padre Vieira; e a maioria com a cabeça baixa, olhos colados nas folhas. Aos poucos a sala foi ficando vazia até restarem os três últimos que tinham de sair juntos depois de assinarem documento garantindo que o Enem foi aplicado com lisura. Foi o primeiro dia. E quem desceu foi recepcionado pela simpática cadela que procurava a todos como se preocupada com cada um.
No segundo domingo, uma semana depois, a mesma tensão. Uma novidade: os pais se procuravam, pois, foi passada a notícia, por Facebook eWhatsApp– claro – de que algumas meninas haviam sido estupradas dentro do campus da UFBa em Ondina. E já se perguntavam o que seria quando a filha fosse aprovada pelo Enem e passam a estudar na universidade. Um pai que me conhecia como jornalista me chama e pergunta se era verdade e eu disse que pelo menos naqueles dias do Enem não houve nenhuma notícia sobre estupro, que só podia ser mais uma fake News. Subi para a sala onde faria a prova e ciências exatas e suas correlações.
O mesmo clima, a mesma tensão, os mesmos ri1ues nervosos e a menina não comia mais barrinha de cereais, acho que deram dor de barriga e agora ela comia salada de frutas e outra meninaabriu uma tupperware e saiu um maravilhoso cheiro de churrasco que quase enlouquece a sala dom tanta gente que foi sem almoçar, inclusive eu, mas não tinha nada no regulamento do Enem que proibisse levar churrasco, sardinha, feijoada ou comida vegana. E a prova transcorria num cheiro de churrascaria gaúcha. Mas ninguém se queixou e os orientadores até que tentaram abrir as janelas emperradas para que o odor amainasse.
Contei que das 60 cadeiras seis estava, vazias. As pessoas tinham desistido ou adoecido, ou viajado ou deixaram para o ano seguinte. Interessante é que a prova de exatas parecia menos tensa para os estudantes: ou sabiam muito ou nada sabiam e com menos de três horas de duração mais da metade dos alunos já tinha ido embora. Não esperei até o final. Assinei o caderno de questão, levantei, com o pensamento desejei sorte e sucesso para todo mundo e desci as escadas. Fui recebido pela cadelinha magra e simpática. Fiz carinho e disse adeus. Vou voltar lá, dias desse e levar para ela uma boa ração. Quem sabe um docinho. Mas acho que o reitor da UFBa deveria fazer homenagem. Dar uma medalha para ela que nem sei o nome, garantir uma ração melhor e com mais sustância e sabor, quem saber um bom lugar para dormir sem chuva e sem frio. Ela que foi de grande ajuda. Coração mais humanitário. Merecia até uma redação. E eu fiz.
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Jolivaldo Freitas é escritor e jornalista: [email protected]