O comerciante e morador do prédio localizado em uma das esquinas em frente ao Elevado Presidente João Goulart, Valdir Maia de Oliveira, de 38 anos, espera não ser o próximo a ter que deixar a região do centro de São Paulo. “Está vendo aquelas portas fechadas ali na frente?”, aponta para o outro lado da via expressa. “São todos comerciantes e moradores que não aguentaram mais pagar o aluguel e foram embora.”
Valdir vive há 21 anos no entorno da Santa Cecília e mora há três no mesmo prédio em que administra o restaurante, no térreo. Assim como outros moradores do centro, ele tem receio do que pode ocorrer com o Minhocão nos próximos meses.
Na tarde da quinta-feira (21), o prefeito Bruno Covas (PSDB) decidiu desativar um trecho da via expressa liga o centro a zona oeste para transformar o espaço em um parque. As obras de adaptação das faixas elevadas, construídas na década de 1970, devem começar no início do segundo semestre deste ano. Da janela de seu apartamento, Valdir consegue ver todo o dinamismo dos 3,4 quilômetros de extensão do Elevado. “Seria muito bom se fosse transformado em um parque”, diz. “Ficaria mais bonito e ajudaria a melhorar essa região que é tão degradada.”
O debate em torno da transformação do Mercadão não é novo. Um grupo de pessoas acredita que a estrutura deveria ser completamente destruída e outro que a construção deve ser aproveitada e adaptada para um parque. A gestão Covas dedicou começar o processo de transformação em uma área de lazer pelos 900 metros da Praça Roosevelt até o Largo do Arouche. O coordenador da Rede Nossa São Paulo, José Américo, afirma que, embora o projeto tem a proposta de melhorar a qualidade do espaço público, pode também provocar o processo de gentrificação, quando mudanças imobiliárias e culturais alteram o perfil de bairros ou cidades. “Esse é um aspecto que preocupa muito”, diz.
Segundo ele, a proposta de construir um parque linear ao longo do Minhocão elevaria muito o valor do imposto cobrado para morar ou alugar imóveis nos arredores. “Todos que moram naquela região ou no entorno da área, inclusive, moradores em situação de rua correm o risco de enfrentar um processo de expulsão”, afirma. “Os moradores não têm ideia do quanto a valorização da região pode ser impactante. As pessoas entendem a mudança apenas do ponto de vista da melhora do espaço.”
Transformação do entorno
Construído na década de 1970, o Elevado, até então chamado Presidente Costa e Silva, provocou diversas discussões em função da extensão de uma estrutura de concreto que invadiria a privacidade de algumas habitações. Moradores tiveram de se acostumar com o barulho cada vez mais intenso de carros e sirenes que passaram a atravessar o município. A poluição crescente é outra reclamação constante de quem abre as janelas e se depara com o asfalto. Uma vez erguido, a via modificou a rotina de quem vive nas proximidades do centro.
O zelador Antônio Praiero da Silva, de 52 anos, trabalha em um edifício comercial localizado no trecho previsto para se tornar um parque. Nascido na Paraíba, ele vive há 35 anos em São Paulo e hoje mora no mesmo local em que trabalha. “Tinham muitas árvores, era um lugar muito bonito.” Favorável à construção do novo espaço, Silva diz que o valor do imóvel e do aluguel deverá subir, mas um espaço público para lazer compensaria o custo maior. Segundo ele, o valor do aluguel no prédio em que faz zeladoria é de R$ 1.300 ao mês.
Nos últimos anos, porém, o centro de São Paulo se tornou mais acessível para populações mais periféricas em consequência da construção do Elevado. “Transformou-se em uma estratégia de ocupação em São Paulo. Isso porque a base da pirâmide, sem uma remuneração alta conseguiu morar nas proximidades do Minhocão”, afirma Américo. Com a transformação do parque e a supervalorização dos arredores, a população de baixa renda teria de voltar às regiões mais periféricas da cidade.
Em umas das esquinas próximas ao Elevado está a pequena loja de materiais de limpeza de Mizael Gonçalves, de 44 anos. Ele se mudou de Pernambuco para São Paulo há 14 anos. “Não troco o centro por nada”, diz. O comerciante não está seguro de que a transformação terá somente impactos positivos. “Aumentaria o valor do aluguel e de tudo por aqui”, diz ele. “Eu teria que voltar para Osasco, onde já morei antes.” Para ele que observa o movimento de carros e das pessoas enquanto fala, as pensões também seriam diretamente atingidas pelo aumento dos preços. “Muita gente teria que se amontoar em pensões, que já são super caras”, diz. Segundo ele, o preço médio cobrado nesses espaços é de R$ 1 mil. “Pensando melhor, até as pensões vão esvaziar”, afirma.
Américo, do Nossa São Paulo, acredita que sem uma estratégia de recuperação da valorização que pode ocorrer com a criação do parque, somente uma parcela da população teria acesso às melhorias criadas. Um exemplo do que poderia ser feito para controlar o aumento excessivo do preço do imposto de moradia e do aluguel é a criação de uma taxa limite para moradores do trecho. “Se a valorização for de 60% poderia ser cobrado 10% de taxa para criar um sistema mais justo”, explica. A lógica, segundo ele, evitaria uma especulação imobiliária desenfreada na região.
O comerciante Mário Araújo Miranda, de 37 anos, acredita que a mudança do espaço público ajudaria a afastar moradores em situação de rua e usuários de drogas. “As ruas acumulam muita sujeira”, diz. Ele, que trabalha em uma loja de móveis antigos há 17 anos, paga R$ 3 mil de aluguel. Outros pontos de comércio nas esquinas chegam a cobrar R$ 7 mil ao mês. “Se as vendas diminuírem não vai mais compensar. Muita gente deve sair daqui.”
Moradores em situação de rua
Ao caminhar por baixo do Minhocão quase não se vê moradores em situação de rua. Nos quilômetros adiante, porém, muitos se concentram embaixo da construção. Fileiras de barracas e carrinhos se acumulam próximo à Praça Marechal Deodoro, trecho que, inicialmente, não deve sofrer mudanças. “A população de rua sofrerá muitos impactos”, diz Américo. “Eles também serão expulsos do Minhocão”, diz. “Resta saber se haverá algum tipo de política de acolhimento ou ampliação do serviço de assistência social? Do contrário, eles apenas migraram para bairros vizinhos, como Higienópolis. A construção do parque aceleraria esse processo.”
Além disso, especialistas concordam que o centro tenderia a se tornar uma região ainda mais excludente, uma vez que o perfil sócio-cultural e de renda vem se modificando. “Cada vez mais jovens com maior poder aquisitivo passam a viver no centro, mais um fator que encarece a vida nesses locais. Por isso é tão importante garantir a pluralidade de habitação sem aprofundar a desigualdade.”
Outro lado
De acordo com a Prefeitura, a construção será dividida em três etapas.Na primeira, serão instalados acessos, como elevadores, escadas e proteções laterais, em nove pontos do Elevado. A previsão da administração municipal é que até o fim do ano essa fase seja concluída. Na segunda fase, serão instalados jardins e estruturas pré-fabricadas.
O custo estimado pela administração municipal é de R$ 38 milhões, a previsão de entrega da obra é para dezembro de 2020. Questionada sobre o impacto da construção do parque no preço dos imóveis e no valor do aluguel no local e sobre o destino dos moradores em situação de rua após o início do projeto, a prefeitura não respondeu.
R7