Terminou ontem (8) a 19ª edição da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Nos dez dias de evento, passaram pelo Rio Centro, na zona oeste da cidade, mais de 600 mil pessoas e foram vendidos mais de 4 milhões de livros, dos 5,5 milhões disponíveis. Na edição anterior do evento, em 2017, foram 3,6 milhões de livros vendidos e público de 680 mil pessoas.
Segundo os organizadores, a bienal é reconhecida como o maior evento literário do país e contou com mais de 300 autores do Brasil e de outros países, além de dezenas de artistas, acadêmicos, filósofos, cientistas, lideranças religiosas, movimentos sociais, ativistas e youtubers, que participaram de palestras, debates e bate-papo com o público.
A diretora-geral do evento, Tatiana Zaccaro, destaca que a média de vendas superou a edição de 2017, passando de 100% de aumento em algumas editoras. Ela atribuiu o sucesso ao ambiente cultural e de discussões de qualidade proporcionado pelo evento.
“As curadorias dos espaços foram incessantes propondo os melhores temas, buscando os melhores autores e personagens. O espaço infantil foi um sucesso, o Café Literário teve todas as sessões praticamente lotadas e a Arena #SEMFILTRO causou um alvoroço, consolidando a Bienal como o maior programa cultural e o mais diverso do país”.
Entre os temas discutidos na bienal este ano estiveram a felicidade, democracia e autoritarismo, meio ambiente, fé, empoderamento, fake news, escravidão, ciências e diversidade. As sessões foram gravadas e podem ser vistas no site.
Censura e manifestações
A 19ª edição da Bienal Internacional do Livro foi marcada pela tentativa de censura de livros de temática LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) por parte da prefeitura do Rio de Janeiro. Na quinta-feira (5) o prefeito Marcelo Crivella determinou o recolhimento da obra Os Vingadores – A Cruzada das Crianças, um quadrinho de super-heróis da editora norte-americana Marvel, em que uma cena mostra um beijo entre dois homens.
A prefeitura nega que tenha havido tentativa de censura ou homofobia e que, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), determinou que a revista fosse lacrada em material opaco e colocada uma advertência sobre conteúdo impróprio para menores de idade. O Artigo 78 do ECA diz que “as revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo”. Fiscais da prefeitura chegaram a comparecer à bienal na sexta-feira e no sábado, mas não apreenderam nenhum material.
O prefeito aparece em vídeo determinando o recolhimento da obra e a prefeitura notificou os organizadores que apreenderia o livro que não estivesse lacrado e com a advertência. Fiscais da prefeitura chegaram a comparecer à bienal na sexta-feira e no sábado, mas não apreenderam nenhum material. Após a declaração do prefeito, a revista esgotou em 40 minutos.
Na sexta-feira os organizadores da Bienal pediram na Justiça o direito de comercializar obras literárias de qualquer temática e foram atendidos pelo desembargador da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Heleno Pereira Nunes. A prefeitura recorreu e conseguiu uma decisão no sábado (7) do presidente do tribunal, Claudio de Mello Tavares, para recolher obras que tratem de temas LGTB “de maneira desavisada” para crianças e jovens.
O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) no domingo (8). Pela manhã, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu à suprema corte a suspensão da decisão judicial do TJRJ e foi atendida pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli. Também ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes determinou a suspensão da decisão do TJRJ, atendendo a pedido de mandado de segurança dos organizadores da Bienal.
Apesar da proximidade do fim do evento, a prefeitura ainda entrou com um pedido de embargos de declaração no STF, por meio da Procuradoria-Geral do Município, pedindo a suspensão da liminar concedida por Toffoli. Diante da repercussão do caso, o presidente do TJRJ divulgou nota na noite de ontem negando que tenha compactuado com censura.
“Censura ocorreria se eu houvesse proibido a publicação ou circulação da obra em questão. Como se trata de espaço aberto ao público, o que determinei, segundo meu convencimento, foi simplesmente o alerta sobre conteúdo delicado, para que os pais pudessem decidir ou participar da decisão de aquisição da obra, voltada ao leitor infanto-juvenil, ainda em formação”, disse Tavares.
Repercussão
No último dia do evento, houve manifestação do público contra a tentativa de censura. Dezenas de pessoas marcharam pelos corredores da Bienal com livros de temática LGBT nas mãos falando “não vai ter censura”.
O youtuber Felipe Neto comprou 14 mil livros com essa temática e distribuiu para o público do evento no sábado, embalados em um plástico preto e com o dizeres “este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”. A empresa de comércio eletrônico e-books Amazon disponibilizou mais de 20 obras com temática LGTB para download gratuito.
Na coletiva de encerramento do evento, o escritor Laurentino Gomes comemorou a decisão do STF. “Justiça, né. A gente está lutando pelo básico, pelo direito de falar, de escrever, da imaginação. O mais incrível, de preservar a memória. Não adianta, por mais que se tente alterar a nossa memória, a gente escreve de novo, a gente não vai desistir de escrever. Essa censura na Bienal deu um sopro de vida, de mobilização, de pessoa se importando com as outras, de solidariedade generosa. Foi um vento que serviu para abrir mais os livros, não tem como fechá-los”.
A escritora Thalita Rebouças se disse assustada com os acontecimentos. “A gente estava aqui quando chegaram armados e com viaturas para recolher livros e foi bem assustador. Estávamos eu, Laurentino e Pedro Bandeira e falamos que nós, autores, tínhamos que fazer alguma coisa. Não podemos nos calar agora. Eu fiquei bem assustada, em 20 anos de carreira eu nunca vi nada parecido com o que vi aqui nesses últimos dias. Está difícil”.
O presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Marcos da Veiga Pereira, afirmou que a Bienal se tornou um símbolo da resistência e da livre expressão artística. “Fico feliz em terminar esse festival consagrando o valor que a Bienal tem e com a certeza de que o livro vai prosperar. Acreditamos muito no poder de transformação do livro e, por isso, tivemos convicção do que fazer e de que atitude tomar nesses últimos dias”.
Durante a coletiva, Thalita leu um manifesto dos escritores contra a censura, que também foi divulgado nas redes sociais e pela própria Bienal do Livro.
“Se engana quem pensa que o alvo era a Bienal Internacional do Livro. O alvo somos todos nós cidadãos brasileiros, pois não precisamos ter quem determine o que podemos ler, pensar, escrever, falar ou como devemos nos relacionar. O brasileiro não precisa de tutor. Precisa de educação para que cada um possa fazer suas escolhas com consciência e liberdade”, diz trecho do manifesto.
Agência Brasil