Para muitos americanos, a epidemia de Aids que devastou comunidades a partir dos anos 1980 é uma lembrança do passado. Graças a avanços médicos e novos tratamentos surgidos nas últimas décadas, as taxas de transmissão caíram e, se antes um diagnóstico de HIV era considerado uma sentença de morte, hoje portadores do vírus podem levar uma vida longa e saudável.
Mas esse progresso não ocorreu de forma igual em todo o país, e no sul dos Estados Unidos, especialmente entre a população negra, a doença representa uma crise de saúde pública.
Na metade dos anos 1980, os Estados Unidos registravam mais de 130 mil novos diagnósticos de HIV por ano. Desde o auge da epidemia, esse número caiu drasticamente e, a partir de 2013, se estabilizou abaixo de 40 mil.
No ano passado, 37.832 pessoas receberam diagnóstico de HIV nos Estados Unidos, segundo o Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde. Apesar de abrigar apenas 38% da população americana, o sul respondeu por 52% desses novos casos.
“Nas décadas desde que os primeiros casos de Aids foram documentados em Los Angeles e Nova York, em 1981, o epicentro da epidemia de HIV se deslocou dos centros urbanos para os 16 Estados que compõem o sul e o Distrito de Columbia (onde fica a capital, Washington)”, diz o CDC em relatório divulgado em setembro.
A população negra é “desproporcionalmente impactada”, aponta o relatório, e em 2017 respondia por 53% dos novos diagnósticos de HIV na região. De acordo com o CDC, 67% dos novos diagnósticos em mulheres que vivem no sul são registrados em mulheres negras. Foram 2.584 diagnósticos nesse grupo em 2017.
O impacto é ainda maior entre homens negros que fazem sexo com outros homens, com 6.218 novos diagnósticos na região em 2017, o dobro do que o registrado entre homens gays e bissexuais brancos ou latinos e equivalente a 59% de todos os novos diagnósticos na população negra nos Estados do Sul.
Segundo o CDC, em todo o país, um em cada dois homens negros gays e bissexuais corre o risco de ser diagnosticado com HIV ao longo da vida. Entre homens brancos no mesmo grupo, esse risco é de um em cada 11. Na população geral, uma em cada 99 pessoas corre o risco.
O sul tem o maior percentual de pessoas que vivem com HIV e menor taxa de sobrevivência entre portadores do vírus. Em alguns Estados da região, a taxa de mortalidade em pessoas com HIV chega a ser três vezes mais alta do que no resto do país. Das 15.807 pessoas com diagnóstico de HIV que morreram nos Estados Unidos em 2016, quase metade (47%) vivia no sul.
Além disso, em comparação com o resto do país, menos pessoas com HIV na região sabem que são portadoras do vírus. “Consequentemente, menos pessoas com HIV no Sul recebem tratamento ou cuidados médicos em tempo hábil”, salienta o CDC.
O uso de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), método de prevenção para quem não tem HIV mas corre o risco de contrair o vírus, que consiste em um comprimido diário, também é limitado na região.
“Apesar de os Estados Unidos serem o país mais rico do mundo, no sul ainda há muitas vezes dificuldade de acesso a serviços de saúde”, diz à BBC News Brasil Mardrequs Harris, gerente da Southern AIDS Coalition, organização sem fins lucrativos que atua nos 16 Estados do sul do país.
A região tem a taxa de pobreza mais alta e a menor renda média do país, e abriga quase metade dos americanos que não têm plano de saúde. Muitos Estados do Sul têm exigências mais rigorosas sobre quem pode ter acesso ao Medicaid, programa de saúde para pessoas de baixa renda, o que limita o número de beneficiados.
Sem plano de saúde ou acesso gratuito a prevenção e tratamento, muitas pessoas nem são testadas e só descobrem que têm o vírus quando ficam doentes. A dificuldade é ainda maior em áreas rurais, onde além da oferta limitada de médicos e clínicas com experiência e infraestrutura para tratamento de HIV, há também escassez de transporte público.
De acordo com o CDC, assim como no resto do país, no sul a maioria dos diagnósticos de HIV ocorre em áreas urbanas. Mas a parcela de novos diagnósticos fora dos grandes centros urbanos e em áreas rurais nesses estados é de 24%, maior do que nas outras regiões. Nessas áreas, muitas vezes é necessário viajar centenas de quilômetros para ter acesso a serviços especializados.
“Isso significa que é menos provável que essas pessoas recebam tratamento, mesmo se tiverem acesso a plano de saúde”, diz à BBC News Brasil o vice-presidente e diretor de políticas públicas da amfAR, fundação para pesquisa sobre Aids, Greg Millett.
“E, obviamente, quando você não está em tratamento, se você não tem um médico que entende sobre HIV, é menos provável que você esteja recebendo medicação para HIV, e é mais provável que você transmita (o vírus)”, observa Millett.
John Ouderkirk, diretor médico em Atlanta (Geórgia) da AIDS Healthcare Foundation (AHF), organização global sem fins lucrativos que oferece serviços de saúde para pacientes com HIV e Aids em mais de 40 países, ressalta que mesmo que recebam medicamentos de forma gratuita, muitos pacientes ainda assim enfrentam dificuldades de comparecer às consultas.
“Falta de transporte, falta de moradia, depressão, abuso de drogas são (algumas das) razões pelas quais muitas pessoas não levam adiante o tratamento”, diz Ouderkirk à BBC News Brasil.
Fatores culturais também contribuem para a epidemia de HIV na região, que é profundamente religiosa e conservadora e onde há forte estigma tanto em relação ao HIV quanto a homens gays e bissexuais.
“Algumas pessoas consideram o HIV um julgamento de Deus”, afirma Harris. Ele diz que o estigma e o medo de sofrer discriminação acabam fazendo com que muitas pessoas evitem fazer buscar tratamento ou até mesmo fazer teste para saber se são portadoras do vírus.
Millett ressalta que o estigma é maior no sul do que no resto do país, e em cidades pequenas e áreas rurais. Nesses locais, muitas vezes há apenas uma clínica e todos se conhecem, então pessoas com HIV podem se sentir intimidadas a buscar ajuda.
“Se você vai à (única) clínica, todos ficam sabendo que você tem HIV. É diferente de áreas urbanas, onde você entra em determinado lugar e ninguém nota”, diz Millett.
O diretor do programa de doenças sexualmente transmissíveis, HIV e hepatite do Departamento de Saúde da Louisiana, Samuel Burgess, lembra que a educação sobre saúde sexual costuma ser deficiente em muitas partes do sul.
“Não se ensina educação sexual de forma consistente nas escolas”, diz Burgess à BBC News Brasil. “E,quando se ensina, muitas vezes a homossexualidade não é discutida.”
Além disso, alguns estados do sul ainda têm leis que criminalizam a exposição ao HIV e punem com prisão quem souber que é portador e expuser outra pessoa ao vírus. “São leis antigas, existentes desde os anos 1980, quando havia histeria em relação ao HIV”, destaca Millett.
“Infelizmente, algumas dessas leis não foram revisadas apesar de todos os avanços médicos que mostram que pessoas que vivem com HIV não vão transmitir o vírus a ninguém se estiverem sob medicação. Podem viver vidas longas e felizes, ter filhos e não transmitir o vírus a seus parceiros.”
O uso de terapia antiretroviral pode reduzir os níveis de HIV até que sejam indetectáveis. Especialistas ressaltam o conceito de que “indetectável é igual a intransmissível”. “Há evidências científicas de que quando pessoas com HIV atingem e mantêm supressão viral a níveis indetectáveis elas não transmitem o vírus aos parceiros”, diz Burgess.
Timothy Webb recebeu seu diagnóstico de HIV há quase 10 anos, quando morava na Filadélfia. Logo depois, ele se mudou para o sul, e hoje vive em Atlanta, na Geórgia. Ele conta que, no início, enfrentou dificuldades para aprender sobre como acessar os serviços de que precisava.
Webb acabou recebendo apoio da AID Atlanta, organização que oferece serviços de saúde, prevenção e educação relacionados a HIV/Aids, e hoje trabalha com comunidades afetadas pela epidemia e usa sua história para ajudar outras pessoas com HIV a vencer o estigma e acessar serviços de saúde o quanto antes.
“Quando as pessoas veem alguém na mesma situação que elas, que está prosperando e seguindo em frente, tentam fazer o mesmo”, diz Webb à BBC News Brasil. “Cabe a nós dizer que sua vida não acaba (com o diagnóstico), você está apenas começando um novo capítulo. Você pode ser bem sucedido, ter uma vida, uma família.”
De acordo com especialistas, a solução para a epidemia de HIV no sul passa por uma abordagem multidisciplinar, que além de ampliar o acesso à saúde, envolva também educação, moradia, emprego e outros aspectos.
“Para ser bem-sucedido, um programa de HIV deve olhar para o paciente de forma global, avaliar questões sociais, de abuso de drogas, depressão, instabilidade doméstica, etc”, diz à BBC News Brasil o médico Waref Azmeh, diretor médico da AHF em Baton Rouge, na Louisiana.
Millett salienta que há exemplos de sucesso e várias clínicas e líderes locais em estados do sul que “estão fazendo a coisa certa”. “Há partes do Sul que são líderes na abordagem ao HIV e em demonstrar respeito às pessoas que vivem com HIV.”
Ele diz que a iniciativa anunciada pelo presidente Donald Trump no início do ano de reduzir novos casos de HIV em pelo menos 90% até 2030 pode ser uma oportunidade para os Estados do Sul, onde Trump tem grande base de apoio. O plano prevê recursos adicionais para ampliar prevenção e tratamento de HIV, com foco inicial nas regiões mais afetadas.
Harris também diz ver progresso. “Sou otimista”, afirma. “Quando pintamos o retrato do sul, deve ser não apenas como uma história triste, mas também (é importante) ressaltar que, apesar de tudo o que leva muitas pessoas a desistirem, existe força e resiliência.”
R7