No mesmo mês em que o Brasil confirmou seu primeiro caso de paciente com um novo tipo de coronavírus surgido na China, um velho conhecido dos brasileiros deu sinais de que vai infectar ainda mais pessoas em 2020: o vírus da dengue, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti.
O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde com dados sobre a dengue aponta que o número de casos prováveis da doença — aqueles que são notificados à pasta pelos Estados — cresceram 19% nas cinco primeiras semanas do ano em comparação com o mesmo período de 2019.
Foram notificados 94.149 casos prováveis até a quinta semana do ano (mais precisamente de 29/12/2019 a 01/02/2020), ante 79.131 no mesmo período no ano passado.
Neste início de 2020, há a confirmação de que pelo menos 14 pessoas morreram por dengue no país. A comparação de óbitos com 2019 ainda é incerta, já que os números ainda podem mudar bastante conforme chegam os resultados de análises laboratoriais e à medida que os Estados e municípios enviam seus informes ao ministério. Os dados do boletim atual, por exemplo, ainda não computam os casos e as mortes registrados a nível local em fevereiro.
Mas o ministério já trabalha com um cenário de aumento de casos de dengue para este ano, e alguns municípios e Estados pelo país decretaram alerta para uma epidemia de dengue — que é definida quando há uma taxa de 300 casos confirmados de doença para cada 100 mil habitantes.
Hoje, o país tem em média uma incidência de 44,8 casos prováveis para cada 100 mil habitantes, valor que também é maior do que o registrado no boletim de mesmo período do ano passado (26,3 casos por 100 mil; a comparação entre boletins de diferentes anos deve ser feita com cautela, já que há muitas alterações e atualizações de números depois que eles são publicados).
A situação varia drasticamente dentro do país, e três Estados já dispararam com mais de 200 casos por 100 mil habitantes: Acre (taxa de 281,65/100 mil); Mato Grosso do Sul (249,98/100 mil) e Paraná (220,75/100 mil).
No entanto, a tendência de alta da dengue neste ano só poderá ser confirmada nos próximos meses — historicamente, o número de doentes cresce a partir de março.
Especialistas e representantes de governos entrevistados pela BBC News Brasil atribuem a tendência de alta da dengue em 2020 a uma combinação de fatores: primeiro e talvez mais importante, um novo ciclo poderoso de circulação do sorotipo 2 ( existem 4 sorotipos do vírus da dengue, uma classificação que corresponde à resposta de diferentes anticorpos no infectado); soma-se a isso condições meteorológicas particulares nos últimos meses e fatores culturais e comportamentais da população.
Confira informações sobre sintomas, prevenção e tratamento da dengue no site do Ministério da Saúde.
Mapas de casos da doença deixam claro o destaque em uma faixa do país que começa no Acre, passa pelo Centro-Oeste e por parte do Sudeste, terminando no Paraná. Estados do Nordeste, como Paraíba e Pernambuco, tiveram poucos casos em comparação com unidades de outras regiões.
No Paraná, os dados do crescimento da dengue impressionam. Em fevereiro do ano passado, o Ministério da Saúde apontou que o Estado tinha 14 doentes por 100 mil habitantes; já hoje, esse número chega a 220,7 — alta de 1.471% na incidência na comparação entre boletins dos dois períodos.
Desde agosto, quando o Estado passou a contar um novo período epidemiológico, foram confirmados quase 35 mil casos da doença. Só na última semana, foram 8,2 mil novos doentes. Ainda de acordo com o governo estadual, 14 pessoas morreram de dengue neste ano — por serem fornecidos pelo Estado, esses dados são mais atualizados do que os compilados pelo Ministério da Saúde.
“Nesse momento, estamos com um quadro de curva ascendente da doença. A tendência é de uma situação de piora impactante, pois o período de maior incidência ainda vai começar em março”, diz Ivana Belmonte, coordenadora de vigilância ambiental da Secretaria de Saúde do Paraná.
Segundo ela, a alteração do tipo de vírus circulante é uma das explicações para o aumento da dengue no Estado e em boa parte do Brasil. De 2010 ao ano passado, a grande maioria das pessoas que teve dengue no Paraná foi infectada pelo tipo 1 da doença. Já a partir de agosto de 2019, o sorotipo 2 foi responsável por 83% das infecções por dengue no Estado.
Uma pessoa pode ter os quatro sorotipos da doença, mas uma vez ocorrida a infecção por um deles, adquire-se imunidade permanente para este tipo.
“Quando você pega o tipo 1, fica imunizado contra ele. Por isso que, depois de uma alta, o número de casos tende a diminuir por um período. Porém, quando o sorotipo circulante se altera para o 2, as pessoas não estão imunizadas e acabam contraindo a doença. É isso o que está acontecendo no Paraná e em outros lugares”, explica Belmonte.
De fato, segundo informações enviadas pelo Ministério da Saúde à BBC News Brasil, a participação do sorotipo 2 no número de casos de dengue cresceu nos últimos cinco anos no país, chegando em 2019 ao maior percentual: 65,6% dos casos, seguido pelo sorotipo 1 (30,4%) e sorotipo 4 (3,9%). Os dados para 2019 são preliminares e, para 2020, não estão disponíveis ainda.
“No fim de 2018, o tipo 2 do vírus da dengue voltou a circular depois de 10 anos e vem encontrando populações suscetíveis à doença desde então”, explicou o ministério em nota enviada à reportagem.
A bióloga Denise Valle, pesquisadora do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e idealizadora da campanha “10 minutos contra o Aedes”, explica que, em 2019, o sorotipo 2 já puxou para o alto o número de casos de dengue em vários Estados. No entanto, para vários outros lugares, a chegada deste tipo de vírus é uma novidade e, por isso, os números para 2020 devem ser altos também.
“Em 2019, o sorotipo 2 circulou muito, mas não circulou em todas as regiões do Brasil. Além disso, estamos tendo um verão muito molhado, com bastante chuva — o que também colabora para aumentar a quantidade de criadouros”, aponta.
Valle explica que o país é “hiperendêmico para a dengue, com períodos epidêmicos” — o que significa, com “endêmico”, que as infecções ocorrem o ano todo, apesar de crescerem no verão; e, com “hiper”, que há mais de um sorotipo circulando. A pesquisadora destaca também que, por ter dimensões continentais, o país tem padrões diferentes de contaminação por Estado e até dentro de uma mesma cidade.
Mas, para a bióloga, é digno de nota o que vem sendo observado no Sul nos últimos anos, simbolizado neste 2020 com a presença do Paraná entre os Estados brasileiros com mais casos.
“O Brasil tem dengue o tempo todo, mas o Sul, com clima mais frio, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) maior e cidades melhor estruturadas, vinha atrasando a instalação do Aedes aegypti. Hoje vemos uma consolidação da instalação da dengue na região Sul também”, aponta Valle.
Apesar de apontar para a importância do saneamento e da urbanização no controle do mosquito Aedes aegypti — que também transmite zika e chicungunha —, Valle chama a atenção para o papel das pessoas no combate à dengue e outras doenças.
“O Aedes é um mosquito doméstico. De cada 10 criadouros, 8 estão dentro da casa das pessoas”, destaca.
Ivana Belmonte também menciona questões climáticas, como o aumento das chuvas em determinadas regiões, além de questões culturais para explicar o avanço da dengue no Paraná neste ano.
“A cultura da eliminação de criadouros do mosquito ainda é pequena no Brasil. É preciso sensibilizar ainda mais a população de que o risco é real, de que você ou um parente pode morrer de dengue”, explica.
Segundo ela, municípios do Paraná têm feito mutirões para verificar e eliminar criadouros do Aedes aegypti, mas, mesmo assim, os dados de contágio têm subido.
“Os servidores fazem checagens a cada dois meses em residências, mas isso precisa partir das pessoas também. Não dá para você ficar esperando o poder público limpar o seu quintal”, diz.
Santa Catarina, embora ainda não tenha tido um aumento significativo dos casos de dengue em 2020, já projeta uma alta nos próximos meses. O número de focos do mosquito — quando as cidades identificam criadouros do Aedes aegypti — cresceu 54% até 15 de fevereiro, chegando a mais de 7.600 pontos. O último boletim epidemiológico também aponta que 100 dos 295 municípios de Santa Catarina enfrentam uma “infestação” de Aedes aegypti.
“Pela proximidade com o Paraná e a circulação de turistas, enxergamos um cenário de crescimento da dengue”, diz Tharine Dal Cim, bióloga da Secretaria de Saúde de Santa Catarina. “Nós tivemos verões mais quentes e invernos menos rigorosos. Normalmente, o inverno mais frio controla a proliferação do mosquito. Mas as temperaturas mais amenas, e o fato de o Aedes estar se adaptando a essas condições, têm feito aumentar os focos no Estado”.
Para a bióloga, parte da região Sul ainda não está acostumada a enfrentar a dengue, pois, no imaginário da população, Estados mais frios são livres da doença — a temperatura alta de fato é um fator importante na proliferação dos mosquitos, mas isso não blinda a região Sul do país.
“As pessoas pensam que aqui não tem dengue, que ela só atinge o Sudeste e Nordeste. Então, acaba existindo um descuido com a proliferação do mosquito”, diz Dal Cim.
R7