O escolhido pelo prefeito Bruno Covas para chefiar a Secretaria de Cultura tem 58 anos, e a voz permanece a de um garoto. Hugo Possolo, palhaço, ator e diretor de teatro, fez do timbre atípico a marca de personagens muitas vezes cômicos – e essa qualidade não mudou agora que ele se tornou um homem grisalho, de óculos de vovô, servidor público.
Síntese do artista empreendedor, sócio de um teatro que funciona desde 2006 na praça Roosevelt e que tem um bar de bastante movimento, Possolo conta que, no início da carreira como circense, teve seu sustento garantido com um artifício tradicional na história do circo e do teatro.
Durante pelo menos dois anos, nos idos tempos de “terra arrasada” do governo Collor, era passando o chapéu que conseguia um trocado, quando terminavam os espetáculos de rua que criava nos Parlapatões. A companhia é hoje uma das mais antigas da cidade, mantida desde 1991.
Possolo vê com preocupação o contexto imposto por duas realidades que atingiram em cheio as artes – antes da crise provocada pela pandemia da Covid-19, o cenário já era complicado sob Bolsonaro, por causa da censura a projetos incentivados e por causa de diversas paralisações nos principais instrumentos de incentivo público do país.
“O governo Bolsonaro tenta replicar o mesmo modelo do governo Collor, com a diferença de que agora já se edificou um universo de políticas públicas, e com a diferença de que há uma articulação muito maior hoje em dia, com os artistas organizados para poder se defender”, diz o secretário.
Ele ingressa na política numa administração tucana e com um discurso de esquerda assumidamente oposto ao do governo federal. Ao mesmo tempo, mantém um olhar crítico à ideia de que a política pública deve estar a serviço dos artistas e não da população e da formação de público.
“Não adianta traçar uma política cultural pensando apenas na sobrevivência de produtores, dos artistas e dos técnicos. Isso tem de se manter por meio de uma relação do que eles oferecem para o público. O que resulta para a população?”, pergunta, numa entrevista concedida por vídeo.
Formado em jornalismo, carreira que nunca levou adiante, ele fez parte, como militante e artista, do círculo que promoveu no fim dos anos 1990 o movimento Arte Contra a Barbárie, cuja principal vitória foi redigir junto a vereadores a Lei de Fomento ao Teatro, edital para grupos independentes.
Possolo foi um dos redatores da lei. Naquele grupo, ele se lembra de ter visto as companhias de teatro de São Paulo, “cerca de 40”, e comemora porque hoje eles são pelo menos 600 inscritos na Cooperativa Paulista de Teatro. “Fora os que não estão lá”, diz o secretário, atribuindo essa expansão, em parte, às políticas de incentivo implantadas em 2002. Também está na bagagem de Possolo participação na fundação da SP Escola de Teatro, ligada ao estado.
Agraciado quatro vezes com a Lei do Fomento, os Parlapas, como ficaram apelidados, tiveram a oportunidade anterior, ainda no início dos anos 2000, de fazer uma residência no extinto TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, herança histórica dos anos 1940.
Foi lá que deixaram um pouco de lado o perfil mambembe e conseguiram criar uma unidade de repertório que os pôs ainda mais em evidência. Os Parlapatões chegaram à praça Roosevelt antes da reforma que deu a ela o respiro para skatistas e o contorno de um lugar público que se tornou ponto de encontro.
Ao lado dos Satyros e grupos que já haviam ocupado aquele espaço degradado, fizeram pressão para que uma nova praça surgisse. Ela passou por uma reforma, e novos conflitos surgiram. A especulação imobiliária elevou aluguéis e os preços dos imóveis. Moradores passaram a reclamar do barulho da vida noturna.
Seu teatro num ponto que se tornou mais um foco de especulação imobiliária na cidade de fato chegou a ser lacrado há três anos por excesso de ruído. Seu histórico de empresário no fervilhante Baixo Augusta, aliás, o aproxima de seu antecessor na secretaria, Alê Youssef, um dos maiores agitadores desse reduto paulistano e que se beneficiou como investidor da noite ali, à frente do extinto Studio SP e de um bloco de Carnaval.
O discurso deles, anti-Bolsonaro, está bem alinhado no que veem como espécie de resistência aos ataques do presidente à expressão artística. Foi na gestão de Possolo à frente do Theatro Municipal no ano passado que o principal palco da cidade viu Fernanda Montenegro abrir fogo contra a censura, e Youssef, que disputa a vice-prefeitura ao lado de Covas, estava ali, a seu lado.
Segundo Possolo, o governo federal, mesmo na administração petista, deixou sua política de subsídios muito restrita ao modelo da isenção fiscal, com poucos editais para os independentes. Mas ele afirma que, financiando festivais, o extinto Ministério da Cultura conseguiu de alguma forma abastecer o cenário.
Artistas eram estimulados quando chamados para se apresentar nesses eventos. “Agora reduziram a capacidade de subsídios, não só pela maneira como a lei vem sendo maltratada, como também pela ruptura súbita de apoio das estatais”, diz. “É uma vergonha para um país que vinha se constituindo como um circuito de artes”, diz.
Logo no início de seu mandato, Bolsonaro determinou o encerramento de um já tradicional programa de incentivo às artes pela Petrobras e reduziu os patrocínios das principais empresas do governo.
“O impacto foi provocado pela economia e pela criminalização da cultura”, diz Possolo. “A gente circulava muito pela Caixa Cultural, por exemplo. A Petrobras retirou o patrocínio dos festivais, e não da gente. Mas isso acabou fechando muito o círculo. Deixamos de levar espetáculos para outras cidades.”
Na visão do diretor e ator Ivam Cabral, Possolo construiu uma “trajetória consistente”. “Devemos muito a Hugo, proponente de ações assertivas na história recente do circo no país”, afirma o vizinho da praça Roosevelt, diretor do grupo Os Satyros.
Bahia Notícias