Rotina semelhaante e repleta de dificuldades enfrenta Thalia Marcele Silva, de 22 anos, mãe de Miguel, de quatro. Em comum, as três mulheres têm uma rotina sem pausas em que falta renda para garantir alimentação e condições de higiene aos filhos, sofrem com a ruptura da rede de apoio durante a pandemia e, sobretudo, temem ficar doentes por não saberem quem poderá cuidar das crianças. “Não sabemos onde está esse inimigo invisível. Meu medo é essa doença chegar na minha família, não posso me dar ao luxo de ficar doente”, diz Cristiane.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o percentual de domicílios comandados por mulheres saltou de 25%, em 1995, para 45%, em 2018, principalmente em decorrência do crescimento da participação feminina no mercado de trabalho. No entanto, durante a pandemia, com a suspensão do funcionamento de creches em todo o país, mães acumulam funções dentro de casa e cumprem uma jornada exaustiva em cômodos apertados para seguir o isolamento social.
“Perdemos o acesso à escola, que é um grande agente de cuidados para a família, o contato com a rua, com o público, perdemos tudo”, diz Thaiz Leão, mãe, diretora do Instituto Casa Mãe e coidealizadora do Projeto Segura a Curva das Mães, que busca ajudar mulheres durante a epidemia. “As mães estão nesse lugar de onipresença que não é real porque trata-se de apenas um corpo, uma mulher, um recurso finito.”
A maternidade, de forma geral, explica Thaiz, já implica em um isolamento cultural. Em um cenário de pandemia, determinadas dificuldades se impõem sem que ao menos sejam questionadas. “Muitas mulheres simplesmente assumem e se colocam em um lugar de ser super potentes, mas isso as impacta fisicamente”, diz.
Nesse contexto, em que muitas mães solos assumem a responsabilidade de cuidar da saúde de todas as pessoas que vivem em uma mesma casa, nasceu o projeto “Segura a Curva das Mães”, realizado pelo Instituto Casa Mãe e pelo Coletivo Massa. O nome, que faz referência a contenção da curva do coronavírus, busca dar apoio financeiro e psicológico para as mães de todo o país durante a pandemia.
A partir de um levantamento para entender as necessidades de mães que vivem em regiões de periferia, o projeto faz um repasse de verba emergencial no valor de R$ 150 por pessoa. Na primeira chamada, foram 732 mães atendidas. “As principais demandas são alimentos, itens de higiene, água potável, gás de cozinha, medicamentos e por fim o aluguel. O projeto também auxilia as mães que possuem despesas maiores por meio de padrinhos e madrinhas que podem adotar famílias para se responsabilizar.
“É preciso pensar que existem mães que vendiam pipocas na rua, agora não tem mais rua para vender”, afirma Thaiz. “Elas têm de trabalhar com a perspectiva do que é essencial nesse momento, por exemplo, costurando máscaras. Ao mesmo tempo como conseguem trabalhar, cuidar das crianças e limpar a casa?”
Outro problema vivenciado por mães brasileiras que a pandemia joga luz é a redução da rede de apoio à mulher. “Por conta do isolamento, as crianças não conseguem frequentar escolas e creches”, afirma Thaís Ferreira, também idealizadora do Projeto Segura a Curva das Mães. “Com isso, as mulheres não conseguem caminhar nas ruas, socializar com outras pessoas e ter um respiro. Sem autonomia e independência financeira, a mulher se vê em meio a uma situação de estresse tóxico.”
Enaltecer as inúmeras funções assumidas por mulheres durante o período da quarentena é, segundo Thaís, uma forma de romantizar mais uma vez a maternidade. “Reforçar isso é mais uma vez colocar a mulher num lugar de guerreira que pode suportar tudo, ainda que custe a sua própria vida”, diz. “A gente, na verdade, sofre para maternar em um ambiente de ausência de recurso financeiro, de alimentação, em circunstâncias de vulnerabilidade.”
Para suprir essas necessidades, o projeto destina R$ 150 às mulheres com mais dificuldade financeira, oferece uma rede de apoio por meio de psicólogas e atendimento jurídico e compartilha ensinamentos de autocuidado.
Hoje, o projeto atende 1.734 mães com diferentes problemas em todo o país. “Relacionamos as mães que sofrem com a falta de alimentos com pessoas que podem fazer doações”, explica Thaís. “Fazemos os repasses de acordo com as urgências.” A pandemia, segundo Thais, mostrou como o país não superou desigualdades sociais, mas sobretudo, raciais.
“São as histórias da minha mãe, minha avó, minhas amigas. Os processos de dignidade têm de começar desde a barriga da mãe. Estamos com a oportunidade de olhar para tudo isso e fazer com que as soluções sejam perenes”, explica. “Ao mesmo tempo, há um risco de retrocesso muito grande. Sem manter essas vozes em volume alto vamos retroceder.”
As falas ao telefone interceptadas por pedidos de espera para atender aos filhos, brincar ou apenas segurá-los no colo reflete o quão disputado pode ser o instante de uma mãe que cumpre o isolamento social. “As pessoas nunca compreenderam a maternidade na sociedade, tampouco, a maternidade solo”, afirma Jade Alcântara Lobo, socióloga e pesquisadora de maternidades negras da Universidade Federal de Santa Catariana. “As políticas adotadas pelo governo sempre pularam a maternidade.
Essas mulheres, explica a socióloga, já tinham dificuldades para entrar no mercado de trabalho. “Agora, há um seríssimo agravamento dessa situação”, diz Jade. “Os problemas que surgem a partir dos lares também devem ser levados em consideração: como vão comprar material de limpeza, ter acesso à água encanada, água potável? São pessoas que, historicamente, estão em lugares de risco ambiental em decorrência de um processo de marginalização.”
Moradora de Bertioga, no litoral de São Paulo, Cristiane dos Santos trabalhava como trancista. Com a pandemia, afirma que como não pode atender clientes em casa, teve de parar de trabalhar. “Fico o tempo todo dentro de casa com eles, acordamos e acompanhamos as atividades da escola. À tarde, fazemos algumas brincadeiras, mas é muito difícil segurar a ansiedade deles”, diz. “Me sinto cansada. Ser responsável pelo sustento do lar, provedora da casa, tudo isso ao mesmo tempo e ainda sentir medo de ficar doente.” Contrair a covid-19, para Cristiane, afetaria toda a dinâmica da casa.
Antes da pandemia, Cristiane fazia aulas de ioga e alongamento, participava de um projeto de horta comunitária no bairro em que vive e levava a bebê para a creche de bicicleta. Com a rotina drasticamente alterada ela não consegue enxergar uma suposta volta à normalidade. “Apesar de estar tudo aberto aqui na minha cidade, não sabemos onde está esse inimigo, por isso, não posso me dar ao luxo de ficar doente.”
No início da pandemia em São Paulo, a professora de ioga e massoterapeuta Fabiana Ferreira Costa, de 35 anos, começaria a trabalhar em um espaço especializado no atendimento para mães. “O local foi fechado para evitar contato com pessoas. Minha filha estava no período de adaptação na creche e eu tinha agendado alguns médicos. Tive um colapso de tensão, chorava, fiquei muito triste”, diz ela. “Tive a sensação de que minha vida estava melhorando quando, de repente, me senti caindo e com uma criança no colo.”
Hoje, Fabiana sente pânico quando pensa na possibilidade de ficar doente. “Se eu faltar, quem vai me ajudar? O pai dela está no Paraná, meus pais são idosos. O medo é a pior sensação.” Fabiana vive com Melissa em casa no quintal do imóvel dos país na Vila Andrade, na zona sul de São Paulo. “Praticamente toda semana preciso ir à feira, com máscara e álcool gel. É cansativo sair de casa.”
A casa de Fabiana é formada por dois cômodos, que impõem uma grande limitação de espaço às brincadeiras que tenta praticar para distrair a filha. “Cuidar 24 horas de uma criança é muito cansativo, ela tem uma energia que não acaba.” Atualmente, Fabiana é acompanhada pelo projeto Segura a Curva das Mães pelas redes sociais e conta com ajuda financeira e psicológica. “Conversar e ter apoio é muito importante para eu conseguir sair do estado de tensão que estava. Aqui, nem a televisão pega para distrair a cabeça.”
Fabiana tem evitado sair até mesmo para ir aos médicos que necessita. Além de adiar suas consultas, passou a fazer atendimento pediátrico para a bebê por telefone. “Usei a ajuda financeira para comprar coisas para fazer um xarope. O medo dela ficar doente e não ter a minha assistência é enorme. Eu abraço minha filha, mas não tenho quem me abrace.”
Thalia Marcele Calixto Silva, de 22 anos, trabalhava como repositora em um supermercado, mas perdeu o emprego há pouco mais de dois meses, em meio à pandemia. “Ainda não consegui retirar o auxílio emergencial porque ainda consta que trabalho”, afirma. Desde então, as contas e as responsabilidades de Thalia, moradora do bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo, não pararam. Com um aluguel de R$ 750, ela acumula dívidas e utiliza a ajuda de R$ 150 para comprar alimentos para o filho Miguel, de quatro anos.
Sem emprego, a jovem tenta vender produtos de beleza. “Às vezes não consigo dormir de tanta preocupação, tenho medo de ser despejada. Dormir vendo meu filho pedir alguma coisa e eu sem poder dar é horrível”, diz. Ambos dividem uma casa de três cômodos. Segundo Thalia, Miguel é muito agitado, gosta de fazer bagunça, correr e sair. “Tento fazê-lo entender, mas é difícil. Ele não tem companhia para brincar, não tem espaço. Ele fica o dia todo comigo, tento brincar, ensinar algumas coisas, mas temos bronquite, então, precisamos nos cuidar o tempo todo”, afirma.
A mãe de Thalia vive em Mogi das Cruzes e os demais familiares na Bahia. Sozinha, ela é ajudada pelo projeto e aguarda na fila para contar com um atendimento psicológico. “O grupo tem ajudado muito, as pessoas tentam me incentivar. Sempre que penso que meu problema é maior, vejo depoimentos de outras mães e isso me acalma, me deixa em paz”, afirma. “O maior desespero é essa situação não acabar. A proprietária da cada não vai esperar tudo passar para cobrar o aluguel.”
A pesquisadora Jade Alcântara Lobo analisa os desdobramentos sociais da covid-19 sob a ótica da necropolítica. O conceito foi desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em 2003, escreveu um ensaio questionando as escolhas do Estado sobre quem deve viver e quem deve morrer.
Nesse sentido, explica Jade, a abertura do comércio, a escolha de quem vai continuar a trabalhar e utilizar o transporte público são mecanismos que sustentam a necropolítica. “É um genocídio contínuo”, diz ela. “Um país que não pensa em cuidados e políticas para crianças tem mulheres extremamente sobrecarregadas cuidando dos outros e com a saúde mental afetada.”
A socióloga explica ainda que o Estado precisa desenvolver a rede de apoio a essas mulheres. “Elas precisam de uma renda mínima, de tempo para si mesma em um contexto em que o lazer lhes foi arrancado”, afirma. “A figura do reprodutor masculino que, em muitos casos, poderia fazer parte dessa rede de apoio, pode ser uma ameaça de violência, despertando vários tipos de gatilhos.”
Em outros casos, nas situações em que a família é parte da rede de apoio, não raro, a ajuda se torna uma espécie de dívida. “É como se fosse uma dívida imensa e infinita, com uma série de abusos e humilhações.”
Por isso, explica a socióloga, a rede de apoio precisa ser problematizada pelo governo e, sobretudo, pela sociedade. “As crianças não podem ser vistas somente como uma responsabilidade das mães. Tudo passa a ser jogado como culpa da mulher porque não temos uma noção de comunidade. É a feminização da responsabilidade.”
R7