A emenda constitucional que criou o teto de gastos, mecanismo que limita à inflação, previu uma série de gatilhos que seriam disparados caso o limite seja ultrapassado. No entanto, o texto também veta que o governo envie ao Congresso um Orçamento prevendo o estouro do teto, o que na prática inviabiliza o disparo dos gatilhos.
Hoje, a única possibilidade de eles serem disparados é se o governo estourar o Orçamento do ano corrente em razão de restos a pagar de exercícios anteriores. Para isso, no entanto, seria necessário a concordância do Tesouro, algo pouco provável na avaliação de economistas.
Outro problema é o risco de responsabilização pelo Tribunal de Contas da União (TCU), aponta Marcos Mendes, um dos criadores da regra do teto de gastos.
Os gatilhos, elencados no artigo 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, impedem a criação de despesa obrigatória e adoção de qualquer medida que leve ao seu crescimento acima da inflação, a criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, a renegociação de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e a concessão ou ampliação de incentivos fiscais.
Reajustes do salário mínimo acima da inflação também são vedados.
As demais proibições congelam gastos com o funcionalismo. São vetados reajustes salariais e criação ou majoração de benefícios para servidores públicos e militares, criação de cargos e mudanças na estrutura de carreiras que impliquem aumento da despesa, contratação de pessoal e a realização de concurso público.
Na redação original da Emenda Constitucional 95, o Presidente da República poderia mandar um Orçamento acima do teto para o Congresso e isso ativaria os gatilhos. O Congresso, no entanto, alterou o texto obrigando o Executivo a enviar um projeto de lei orçamentária anual (PLOA) dentro do teto. “Ninguém percebeu que isso impedia a ativação dos gatilhos”, diz Mendes.
“Há uma contradição que vem de um erro de redação do teto de gastos, cometido na origem, que faz com que ele tenha comandos contraditórios. Ao mesmo tempo em que ele diz que o PLOA não pode romper o teto, ele manda acionar gatilhos se ele for rompido”, afirma Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado.
Dada essa redação, o envio pelo governo de um projeto de lei com estouro do teto pode ser considerado um crime de responsabilidade.
Ciente desse problema, a equipe econômica apresentou em novembro passado uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê o disparo dos gatilhos caso a despesa corrente supere 95% da receita corrente. Com a pandemia, contudo, a chamada PEC Emergencial ficou parada no Congresso.
Uma saída para o problema sem envolver nova legislação seria a realização de um acordo entre governo, TCU e Supremo Tribunal Federal (STF) permitindo o estouro do teto a partir de uma interpretação que o respeito ao limite é impossível, tal como já foi negociado com relação à regra de ouro (que impede endividamento para pagar despesas correntes).
No entanto, não há sinais de que uma solução do tipo esteja sendo costurada. “Estamos a um mês do prazo para envio do PLOA e até agora não há nenhuma discussão a respeito do acionamento dos gatilhos, então o governo está entendendo que consegue cumprir o teto no ano que vem”, diz Salto.
O IFI, no entanto, trabalha com uma projeção de alto risco da ruptura do teto em 2021, dado que a redução de despesas discricionárias já está perto do limite mínimo para viabilizar o funcionamento da máquina pública. Isso significa que uma redução ainda maior desses gastos pode acabar paralisando o Estado.
Mendes entende que a ideia de um acordo, como feito para a regra de ouro, é arriscada e defende em vez disso que o problema seja solucionado via legislação. “No contexto atual, em que o próprio Poder Executivo quer encontrar brechas para driblar o teto, você pode gerar uma mudança constitucional que acaba anulando esse limite, fazendo com que ele perca o sentido.”
Para Salto, uma solução que permita o acionamento dos gatilhos pode dar fôlego para que governo e Congresso elaborem uma proposta alternativa para o teto de gastos. “Você ficaria com um cenário de gatilhos acionados, sem explosão da despesa, e nesse meio tempo montar uma revisão das regras vigentes”, diz.
Mesmo sem o disparo dos gatilhos, parte dos vetos impostos por ele já estão sendo implementados na prática pelo governo, como a suspensão de reajustes para o funcionalismo e a realização de concursos públicos, diz Mendes. A exceção são os militares.
A função dos gatilhos, nesse caso, seria fortalecer a posição do governo, que ganharia status de determinação constitucional, em face de pressões de setores pela expansão de gastos.
Crítico do teto, o economista e professor da FGV Nelson Marconi diz que o acionamento dos gatilhos pode impactar despesas de custeio com equipamentos públicos, como hospitais, e expansão de gastos com programas como seguro-desemprego e financiamento da folha de pagamentos.
“Limitar os gastos com pessoal tudo bem, mas tem outras áreas como ciência e tecnologia, investimentos públicos que não poderão ser feitos. Numa situação como a crise atual, que é inclusive social, você disparar os gatilhos seria muito prejudicial para o país”, afirma.
Bahia Notícias