Após seis meses de medidas de combate à disseminação do novo coronavírus no Brasil, começamos a ter uma ideia mais clara do sofrimento psíquico provocado pela pandemia.
A reportagem do R7 ouviu psicólogos que atendem diariamente pacientes de diferentes classes sociais, seja em consultórios particulares ou no SUS, na tentativa de entender a evolução dos medos e aflições que podem atuar como causadores de sintomas ansiosos.
Uma pesquisa da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) publicada em maio revela que houve um aumento de 80% nos casos de ansiedade e estresse. A ansiedade é uma reação do organismo para avisar que estamos em perigo, seja ele real ou imaginário, e age como um mecanismo de sobrevivência do ser humano.
Quando desencadeada em demasia, surgem o transtorno ou as crises de ansiedade e de pânico. É o que explica a psicóloga Katree Zuanazzi, que atua em Curitiba, no Paraná. Entre seus pacientes, a maioria são brancos entre 30 e 40 anos e grande parte está inserida na classe B que, de acordo com o Centro de Políticas Sociais da FGV, são pessoas com renda mensal entre R$ 8.641 e R$ 11.261.
Segundo Zuanazzi, no primeiro momento em que seus pacientes foram confrontados pela pandemia, as principais apreensões giravam em torno do medo da morte e de uma possível insegurança financeira projetada por um cenário de isolamento social. Para a maioria deles, a mudança de realidade provocada pela chegada do vírus no país duraria no máximo dois meses.
De lá pra cá, 13 pacientes de Zuanazzi precisaram de atendimento psiquiátrico para receber alguma medicação, um aumento de 55%. Foram os casos em que apenas o acompanhamento psicoterapêutico não foi suficiente para que o quadro de ansiedade apresentasse alguma melhora. O número de pessoas que procuraram atendimento no consultório também cresceu, fazendo com que, pela demanda, a profissional precisasse fazer encaminhametos para psicólogos parceiros.
“Agora o desespero financeiro está maior do que o medo pela covid, porque em relação à doença as pessoas podem usar máscara e cuidar da higiene, mas o problema financeiro não tem como evitar”, conta a psicóloga.
Seis meses depois, somam-se também às apreensões do início o desgaste emocional provocado pela quarentena prolongada. A falta de convívio social e de contato afetivo tem sido ponto frequente nas sessões de terapia. “As pessoas estão começando a se sentir sufocadas”, afirma Zuanazzi.
Por outro lado, as pessoas que recebem atendimento psicológico na UBS (Unidade Básica de Saúde) do Parque Reid, em Diadema, região metropolitana de São Paulo, não apresentam sinais de esgotamento emocional provocado pelo isolamento social, isso porque, para eles, não foi possível cumprir o distanciamento recomendado como medida de prevenção pela OMS (Organização Mundial de Saúde).
O psicólogo Anderson Codonho, que atende a região há quase dois anos, explica que as características habitacionais da cidade impossibilitam o isolamento. Entre seus pacientes, grande parte é migrante nordestino e pelo menos metade é preta ou parda; e está inserida na classe D, com um rendimento mensal em torno de R$ 1.255 e R$ 2.004.
De acordo com o último censo do IBGE, de 2010, Diadema ocupa o primeiro lugar do ranking de densidade demográfica do estado de São Paulo. São 12,5 mil habitantes por quilômetro quadrado, ao contrário da capital paranaense, que registra 4.027,04 pessoas. “É rotina famílias inteiras ocuparem três cômodos, ou haver seis casas no mesmo quintal”, afirma o profissional.
Tanto para crianças quanto para adultos de todas as idades, os atendimentos de rotina com o psicólogo foram suspensos em março depois que a UBS se tornou um centro de diagnóstico para covid-19. Permaneceram apenas o acompanhamento de casos agudos de todos os tipo, não apenas de depressão e ansiedade, e a assistência às famílias enlutadas pela perda de alguém pelo novo coronavírus.
O cenário é parecido nas outras 19 UBS da cidade. De acordo com a Secretaria de Saúde de Diadema, os profissionais seguem realizando o monitoramento de seus pacientes via telefone ou WhatsApp, e o atendimento presencial se manteve para casos graves, com destaque para os que apresentam risco ou ideação de suicídio.
No entanto, a supressão do atendimento presencial para casos mais leves não evitou a procura. Ainda de acordo com a pasta, diariamente pessoas têm procurado as unidades em busca de assistência psicológica, relatando intensificação dos sintomas de ansiedade ou danos na saúde mental provocados por violência doméstica. Neste caso, o atendimento é presencial e individual, respeitando as recomendações de distanciamento social.
“Na maioria das vezes o paciente chega desesperado pelo medo da contaminação ou do desemprego. A comunidade que eu atendo tem sido impelida para a rua por necessidade de sobrevivência, em período de liberação do auxílio emergencial o supermercado fica lotado”, conta Codonho.
Há cerca de um mês, o atendimento presencial para adultos tem sido retomado de forma gradual, mas ainda prejudicado. Isso porque, por amparar cerca de 19 mil pessoas, as sessões de terapia oferecidas pela UBS aconteciam em grupo, o que não é possível dentro do “novo normal” estabelecido pela pandemia. Para os que puderam retornar para o acompanhamento, Codonho notou um agravamento dos casos. “Um paciente era muito ansioso, agora que voltou, ele conta que começou a beber”.
As opções de tratamento oferecidas também foram afetadas. Para os quadros de ansiedade e depressão, além de psicoterapia e medicação, o psicólogo tinha como aliadas algumas terapias adjuvantes, como meditação e auriculoterapia. “Na minha unidade tinha grupos de meditação para onde eu encaminhava alguns dos meus pacientes, ou eu sugeria uma caminhada na praça. Agora nada disso é possível, então tratar essa ansiedade ficou ainda mais difícil”, afirma.
Um estudo conjunto entre a OMS e o governo chinês revelou que, apesar de serem menos afetadas pela pandemia, as crianças são vetores potenciais de propagação do vírus. Por este motivo, o atendimento continua suspenso na UBS para elas.
A frase “pretos no topo”, que já incorporou versos de diversas músicas que enaltecem a ascensão de pessoas negras, ganha outra conotação quando o assunto são as mortes causadas por covid-19 na capital paulista.
De acordo com um estudo feito pela Rede Nossa São Paulo, a incidência de óbitos pela doença é maior em bairros paulistanos com mais pretos e pardos. O medo da morte provocado pela pandemia não é, no entanto, frequente entre os pacientes negros do consultório da psicóloga Mariana dos Reis, em São Paulo.
A profissional, que atende majoritariamente pessoas pretas de 20 a 35 anos, explica que o cenário causado pela crise de saúde evidencia uma realidade já experienciada por pessoas negras no Brasil. Em 2016, a CPI do Assassinato de Jovens no Senado revelou que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado pela polícia brasileira.
“Sempre teve o medo de morte para pessoas negras, seja pelo não cuidado da saúde pelo Estado ou pela violência policial. Com a pandemia, a morte só continuou”, explica a psicóloga, que é especialista em saúde mental da população negra.
Outro levantamento realizado pelo Instituto Pólis mostra que a questão do número de óbitos em São Paulo se afunila ainda mais quando é feito um recorte de gênero: de março a julho, morreram 140 mulheres negras e 85 brancas para cada 100 mil habitantes.
Para a psicóloga, a pandemia tem apontado um lugar social que se desdobra em cansaço físico e mental para as mulheres negras. “Tiveram as que vieram a mim após a contaminação de parentes e que estavam fragilizadas nesse lugar de cuidado. Na família tem mais de dois irmãos homens, mas a obrigatoriedade de cuidar ficou para elas”, conta.
A preocupação com o desemprego por parte de pessoas negras revela uma das muitas faces atreladas ao racismo estrutural e que, num cenário de pandemia, têm sido frequentemente apontadas como causadoras de aflição.
“Tem x pessoas na empresa, duas são negras e um já foi mandado embora, como vai ficar pra mim?”, é um dos questionamentos que se tornaram comuns nas sessões de terapia com Reis. “A ansiedade é o sofrimento pelo que ainda não aconteceu, então, um problema que a pessoa já imaginava, na pandemia ganha mais força”, explica a psicóloga.
R7