A pandemia de covid-19 elevou e expôs as vulnerabilidades que os surdos enfrentam, segundo a secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Priscilla Gaspar. “Antes, os surdos já enfrentavam dificuldades mesmo cobrando nas esferas municipal, estadual ou federal a atenção em relação às políticas públicas. Nós levamos um susto e vimos mais ainda as necessidades dessas pessoas”, diz a secretária, que é a primeira surda a chegar a um cargo de alto escalão no Executivo. Ela, que é uma das 28 pessoas com surdez na família, entende que a falta de informações para esse público causa impacto em diferentes espaços.
Uma das providências tomadas pela secretaria foi criar cartilhas para colaborar com a informação de pessoas surdas em relação à covid-19. Para a secretária, a principal questão durante a pandemia era o acesso às informações de primeira necessidade, nas áreas de saúde e também da educação. “Como as pessoas acometidas pelo vírus serão recebidas nos hospitais? Como o surdo vai se comunicar com o médico? Ou na educação, como as pessoas vão acompanhar aulas a distância, em casa. Muitas famílias são vulneráveis. Todas essas questões nos preocupam bastante”, afirma. Para ela, a atenção deve ser ainda maior nesse momento em relação às políticas públicas. Em relação ao período, há uma preocupação extra em relação ao pós-pandemia. “Nós precisamos estar ainda mais atentos a esses grupos. A atenção precisa ser ainda maior”.
Para Priscilla Gaspar, as legislações que garantem os direitos existem, mas precisam ser cumpridas em diferentes esferas pela sociedade. “A Lei Brasileira de Inclusão demorou 15 anos para que fosse reconhecida e regulamentada (em 2015). O maior desafio é a sociedade conhecer e respeitar a legislação”.
Sobre a entrevista
A entrevista foi realizada por videoconferência com a participação da intérprete e tradutora Dânnia Vasconcellos. A conversa é apresentada a seguir no modelo de perguntas e respostas. O português é o segundo idioma para os surdos e, apesar de não ser ser capaz de reproduzir, por exemplo, o sinal que os identifica em Libras, o texto escrito permite que mais pessoas com alguma deficiência tenham acesso ao conteúdo. Além disso, o site da Agência Brasil disponibiliza a ferramenta VLibras, que simula as letras e expressões em Libras por meio de um avatar para traduzir determinados vocabulários menos comuns aos surdos.
Dia do Surdo: histórias de inclusão
Surdos e interpretes contam suas experiências de comunicação.
Agência Brasil – O respeito à legislação de proteção às pessoas com deficiência é um dos maiores desafios desse momento?
Priscilla Gaspar – Para vocês terem uma ideia, a Lei Brasileira de Inclusão demorou 15 anos para que fosse reconhecida e regulamentada. Foi muito tempo e já está aí em vigor há cinco anos em nosso país. É muito pouco tempo. Mas é preciso fazer com que a sociedade conheça o texto da lei que está ali com questões relacionadas a pessoas com deficiência em diferentes dimensões, como a área de educação, do desporto, da empregabilidade e outros setores. Vamos dizer que hoje as as pessoas com deficiência precisam de maior protagonismo e oportunidades no mercado de trabalho e nos espaços de educação, por exemplo,
Agência Brasil – Datas relacionadas à conscientização sobre o Dia Nacional do Surdo ajudam na visibilidade dessas questões?
Priscilla Gaspar – Com certeza porque essas datas são marcos comemorados anualmente. Uma oportunidade de conscientização para pensar também nas conquistas, avanços e também reflexões sobre o que falta. Nós, que trabalhamos no governo federal, lançamos uma campanha muito interessante, com o nome de #eurespeito. Foi lançada para que qualquer pessoa possa fazer seu vídeo e colocar nas redes sociais por exemplo. A campanha ajuda na conscientização e empatia porque, na verdade, aqui no Brasil temos muitas leis que protegem os direitos das pessoas com deficiência, mas poucos conhecem.
Agência Brasil – A senhora falou sobre duas questões complexas no país em relação à inclusão: educação e trabalho…
Priscilla Gaspar – Quando a gente fala dos surdos, elas são pessoas com deficiência, mas elas usam a língua brasileira de sinais e a língua delas é diferente. Existe essa diferença linguística, cultural e de identidade. O surdo usa a língua de sinais para se comunicar e ver o mundo de maneira visual. Então é diferente de outras pessoas com deficiência. As pessoas surdas dependem de uma acessibilidade comunicacional. Nós aqui no nosso país estamos tentando lutar para implantar políticas públicas para os diferentes grupos de pessoas com deficiência. Se a gente for pensar agora nesse momento, durante a pandemia, nós já tínhamos dificuldades.
Antes, os surdos já enfrentavam dificuldades cobrando nas esferas municipal, estadual ou federal a atenção em relação às políticas públicas. Nós levamos um susto e vimos mais ainda as necessidades das pessoas. Como a gente vai buscar atendimento na área da saúde? Como as pessoas acometidas pelo vírus podem ser atendidas? Como o surdo vai se comunicar. Na área de educação, também, como as pessoas vão estudar à distância. Muitas famílias, na verdade, são vulneráveis. A vida de todas as pessoas ficou mais complicada. Outra preocupação nossa é com o pós-pandemia e devemos ficar ainda mais atentos com relação a esses grupos. A gente já vem lutando há muito tempo. Defendo que devemos dar uma atenção ainda maior para as pessoas com deficiência.
Agência Brasil – A senhora pode falar um pouco mais sobre o impacto da pandemia para os surdos?
Priscilla Gaspar – A maior preocupação para essas pessoas é a falta de informação. A pior barreira para os surdos é a acessibilidade comunicacional. Com isso, a secretaria fez cartilhas acessíveis para pessoas cegas em html e também para pessoas surdas com tradução e interpretação em Língua Brasileira de Sinais. Outro desafio é como pensar em educação nesse período. A acessibilidade comunicacional é ainda frágil no nosso país. É importante que estados e municípios façam suas leis para garantir essa acessibilidade.
Agência Brasil – Está muito distante o dia que a Libras será de fato a segunda língua do brasileiro?
Priscilla Gaspar – Desde a lei 10.436, de 2002, a Língua Brasileira de Sinais tem sido . Existem muitas escolas, inclusive, solicitando que tem a Libras como disciplina obrigatória. Há estados que estão solicitando a questão da criação de escola bilíngue para surdos. Eu penso que mais à frente a língua estará mais difundida. O tradutor intérprete também é uma
profissão muito nova e estamos lutando também pelo reconhecimento desse profissional. Ele colabora com o espaço de inclusão em diferentes áreas. Nós preferimos sempre o intérprete humano a qualquer tecnologia. Os avatares, por exemplo, apenas auxiliam nas leituras de textos. Nada substitui o intérprete humano até o momento.
Agência Brasil – Mais alguém da sua família também tem a surdez?
Priscilla Gaspar – Na verdade, eu sou a terceira geração de surdos na família. Minha família tem 28 pessoas surdas. Meu marido é surdo. Minhas três filhas são surdas. Meus pais eram surdos. Meus tios são surdos
Agência Brasil – Qual é a expectativa da senhora para os próximos anos para os surdos no país?
Priscilla Gaspar – Meu maior sonho é que nosso país seja um país bilíngue, de língua portuguesa e também de Libras. Um lugar em que as pessoas sempre possam encontrar alguém que saiba se comunicar comigo. Que o surdo tenha acesso efetivo à educação e que as crianças surdas consigam se desenvolver de maneira bilíngue.
Agência Brasil