As críticas públicas da gestão Jair Bolsonaro à proposta da Pfizer para venda de vacinas contra covid-19 foram vistas por especialistas como atestado da inabilidade em pôr de pé um plano amplo e eficiente de imunização. O temor agora é que a guerra de narrativas afaste outras farmacêuticas com quem o Ministério da Saúde ainda poderia obter mais doses, num momento de alta de casos e óbitos.
A pasta de Eduardo Pazuello divulgou no sábado (23) nota acusando a Pfizer de buscar “marketing” na negociação e indicou pontos que, na visão do governo, pesaram contra o acordo com a farmacêutica americana. Esses obstáculos são contestados por especialistas. A Pfizer não comenta. A sucessão de trapalhadas do governo na pandemia levou partidos a discutirem o impeachment do presidente da República.
Uma das razões citadas pela pasta é o fato de a Pfizer só ter acenado com dois milhões de doses no 1º trimestre. “Para o Brasil, causaria frustração”, disse a Saúde, “pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina”, prosseguiu.
Mas Pazuello foi na última sexta-feira ao Aeroporto de Guarulhos para recepcionar a mesma quantidade de doses da vacina Oxford/AstraZeneca que o ministério importou da Índia para acelerar a imunização, após o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sair na frente com a Coronavac.
Em 2020, o governo chegou a negociar com a Pfizer 70 milhões de doses para 2021, mas a compra não avançou e o Brasil perdeu lugar na fila, apesar de alertas da farmacêutica para a alta demanda. “Dois milhões de doses (da Pfizer) eram pouco em setembro, (mas) sexta-feira recriaram uma ‘fonte luminosa’ e um ‘coreto’ para receber a mesma dosagem (da Oxford”, criticou o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, no Twitter.
“Foi tomada decisão consciente. Não negociaram, mas não previram que isso ia gerar muitas críticas”, diz o professor do Insper e doutor em Economia Thomas Conti. “Minha maior preocupação é que desviar a responsabilidade para o laboratório pode afastar outros fornecedores. O governo politizou a relação com a Pfizer.”
A vacina da Pfizer tem logística complexa, pois precisa ser armazenada entre 70°C a 80°C negativos. Lotufo, porém, listou medidas que permitiriam aproveitar as doses, como enviar lotes de vacina a capitais do Norte e fazer aplicações em hangares e salas de aeroporto, esvaziados na pandemia. Para ele, esse plano dispensaria “superfreezers”, pois as doses sairiam da caixa térmica diretamente para o braço das pessoas. “Se (o envio das doses) ocorresse em dezembro, hoje a catástrofe estaria minimizada no Norte”, escreveu.
Carla Domingues, epidemiologista e chefe do Programa Nacional de Imunização (PNI) de 2011 a 2019, diz ser difícil avaliar o contrato, pois a íntegra não foi divulgada, para ver se há “cláusulas leoninas e abusivas”, como diz a Saúde. Mas questiona o fato de sermos o único país a ter problema para negociar com a Pfizer, enquanto americanos e europeus compraram. “A dificuldade é porque o Brasil não se planejou para essa vacina, de enorme complexidade.”
Conti ainda vê inconsistências na fala do governo: entraves como a ausência do diluente (que seria soro fisiológico comum) e de reposição do gelo seco para manter frascos na temperatura correta seriam resolvidos com planejamento. Sobre eximir a fabricante de responsabilização civil em caso de efeitos adversos, ele diz que essa cláusula já existe há décadas em países desenvolvidos, inclusive para outras vacinas, e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Nos Estados Unidos, o Programa Nacional de Compensação por Danos de Vacinas existe desde 1988 e indeniza quem eventualmente sofra efeitos colaterais após tomar vacinas cobertas pelo fundo (como as de difteria, tétano e hepatite A e B). De 2006 a 2018, foram aplicadas 3,7 bilhões de doses, e só 5.317 compensações pagas.
O fundo, diz Conti, foi criado após uma onda antivacina ter aumentado ações contra farmacêuticas, desestimulando a fabricação e reduzindo a oferta de imunizantes.
R7