A ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, propôs, hoje (9), que os órgãos públicos e as entidades civis que atuam com a questão do trabalho escravo contemporâneo intensifiquem o combate à chamada escravidão doméstica.
O trabalho doméstico semelhante à escravidão é caracterizado por práticas como submeter a pessoa a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes, bem como quando o empregador mantém os funcionários sob vigilância ostensiva, retém os documentos pessoais dos trabalhadores ou impede o acesso destes aos meios de transporte necessários para deixar o local de serviço.
Segundo a Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho, do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), ao menos 30 mulheres submetidas a condições análogas à escravidão foram resgatadas em 2021, o que motivou o próprio Ministério do Trabalho a anunciar, na segunda-feira (7), que intensificará as ações de fiscalização como parte da Campanha Nacional pelo Trabalho Doméstico Decente.
Trabalho de domingo a domingo
Valdeci dos Santos, 48 anos, é uma dessas mulheres. Por 33 anos, a baiana de Feira de Santana trabalhou em uma casa de Salvador onde, inicialmente, cuidava de quatro idosas. Ela trabalhava de domingo a domingo, da hora em que acordava até a hora em que dormia, sem folgas, sem salário e sem qualquer direito trabalhista, desde os 15 anos de idade,.
“Maus tratos físicos eu não sofri, mas até de ladra já me chamaram [no trabalho]”, contou Valdeci durante evento sobre o combate a todas as formas de trabalho escravo, com a presença da ministra. Levada por uma prima para limpar a casa e ajudar a cuidar das idosas, Valdeci não tardou a se dar conta da precariedade de sua situação. Contudo, a rotina e o fato de não conhecer quase ninguém na capital soteropolitana, por muito tempo, a impediram de reagir e buscar seus direitos.
“Eu não ia para a rua porque não conhecia nada, nem ninguém, mas, um dia, conversando com uma vizinha e com o filho dela, que é advogado, ele me orientou e me deu um número de telefone [para que ela buscasse seus direitos]. Eu liguei e contei tudo porque eu passava. Pouco tempo depois, os funcionários foram à casa. Eu me senti livre porque estava cansada, já não aguentava mais. Senti um alívio”, relembrou Valdeci, que agora faz planos para recuperar o tempo perdido. “Quero estudar para ser técnica em enfermagem e seguir em frente.”
Campanha
Para a ministra Damares Alves, os muitos casos semelhantes ao de Valdeci indicam a necessidade de uma campanha nacional – ainda que com ênfase nas regiões Norte e Nordeste – para identificar os casos de escravidão doméstica existentes, informar as vítimas sobre seus direitos e como denunciar a exploração e conscientizar os empregadores sobre a possibilidade de estarem incorrendo em um crime.
“Fica aqui o convite para construirmos uma campanha para alcançarmos as mulheres que estão em condição de trabalho escravo contemporâneo no serviço doméstico, servindo por gratidão. E para conversamos com as famílias que as levaram e que, muitas vezes, não entendem que estão cometendo um crime”, disse Damares durante o evento transmitido pela internet.
“Eu sou do Nordeste [brasileiro], de uma região muito pobre. Na minha infância, vi muitas meninas serem levadas para a casa de famílias em condições [econômicas] um pouco melhores [a pretexto de, lá] serem tratadas como “filhas”. [O que acontece é que] Muitas destas mulheres passam anos [trabalhando] sem direito algum. Muitas envelhecem nesta situação e há muita gente que não tem noção de que está sendo explorada, que está tendo seus direitos violados”, disse a ministra.
“Queremos muito discutir [com órgãos públicos e entidades civis] como podemos dialogar com estas mulheres que vivenciam uma relação muito complexa, pois há, inclusive, quem siga servindo às famílias que as submetem a um trabalho escravo contemporâneo por um sentimento de gratidão; por acharem que receberam casa, comida e roupa”, acrescentou Damares.
“Vamos ter que falar também com as famílias que as levaram – e é possível que algumas destas famílias não tenham noção da gravidade do que fizeram. Por isso, queremos ouvir o Ministério Público do Trabalho, as instituições da sociedade civil. Precisamos encontrar respostas [para como tratar a situação]”, disse a ministra.
Reparação às vítimas
Presente ao evento, o coordenador da Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), frei Xavier Plassat, lembrou que quase 2 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão em 2021, em todo o Brasil.
Para o frei, ações de fiscalização são a “alma” do combate ao trabalho forçado, degradante ou exaustivo, mas devem ser sucedidas por processos de reparação às vítimas e, principalmente, por ações que eliminem as causas estruturais do problema.
“Não se erradica o trabalho escravo apenas resgatando suas vítimas e as devolvendo às mesmas circunstâncias que originaram sua desgraça; deixando impune seus exploradores. O ciclo vicioso da escravidão só se perpetua por um sistema de extrema concentração das riquezas e pela falta de políticas públicas destinadas a mexer nas causas estruturais. Causas que, mantendo a desigualdade e a concentração de rendas, produzem e alimentam a vulnerabilidade de determinados grupos sociais que continuam excluídos do acesso à educação, à moradia, à terra, a territórios e à mera consideração”, comentou Plassat.
Agência Brasil