Quase todos os grupos de língua tupi que povoavam o litoral brasileiro em 1500 desapareceram, mas seu DNA ainda subsiste nos membros de uma tribo do Espírito Santo. Esse material genético traz pistas sobre duas migrações épicas que partiram da Amazônia há mais de 2.000 anos.
Uma dessas expansões em escala continental deu origem às diversas tribos guaranis, enquanto a outra produziu os tupis do Nordeste e do Sudeste, primeiros indígenas encontrados pelos europeus no Brasil. Tais conclusões vêm de um novo estudo, assinado por geneticistas da USP e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que identificaram pela primeira vez a “assinatura” genética dos tupis da Era dos Descobrimentos. O estudo foi publicado na revista PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences).
O feito do grupo, coordenado pela gaúcha Tábita Hünemeier, da USP, só foi possível graças à resiliência dos tupiniquins de Aracruz (ES), uma população que, apesar de cinco séculos de contato com os colonizadores, ainda mantém sua identidade indígena.
Estima-se que a tribo tivesse quase 100 mil membros no século 16. Hoje, cerca de 3.000 pessoas se identificam como tupiniquins. A análise genética revelou que, embora tenham perdido seu idioma original e boa parte de suas práticas religiosas, os tupiniquins ainda carregam DNA predominantemente indígena (51,55%, em média, entre os 47 membros da tribo que doaram seu material genético aos cientistas). No grupo, porém, há indivíduos com mais de 95% de contribuição ameríndia em seu genoma.
Os dados dos tupiniquins foram comparados com seus vizinhos da etnia guarani-mbyá (com uma média de 77% de DNA ameríndio, graças a uma história de contato menos intenso com a sociedade não indígena) e diversos outros grupos tupis e de outras famílias linguísticas do Brasil e das Américas. Também foram incluídas na análise amostras de DNA obtidas em sítios arqueológicos que, no caso brasileiro, remontam a quase 10 mil anos atrás.
As similaridades genéticas entre todas essas etnias foram traçadas com base numa biblioteca de milhares dos chamados SNPs (sigla inglesa de “polimorfismos de nucleotídeo único” – pronuncia-se “snips”). Cada SNP corresponde a uma variação de apenas uma “letra” química nos 3 bilhões de pares dessas letras que compõem a totalidade do DNA humano. Observados em grandes conjuntos, os SNPs trazem informações sobre o parentesco entre as diferentes populações humanas.
Com base nessa comparação, os cientistas conseguiram determinar, em primeiro lugar, que os tupiniquins capixabas correspondem a uma linhagem genética única, que não se misturou a outros grupos indígenas nos últimos séculos, apesar da miscigenação com pessoas de origem europeia e africana. “De alguma maneira eles conseguiram se manter assim, o que é incrível”, disse Hünemeier à reportagem.
Também foi possível montar uma espécie de árvore genealógica ou álbum de família dos grupos indígenas, por meio de modelos matemáticos. E a conclusão mais provável é que, apesar da semelhança de língua e cultura, os grupos tupis e guaranis tenham se diversificado e se espalhado pela América do Sul por caminhos bem diferentes.
Isso porque os tupiniquins têm parentesco mais próximo com grupos do centro-leste da Amazônia, como os paracanãs e os urubus-caapor (do Pará e do Maranhão, respectivamente), enquanto estão mais distantes dos guaranis-mbyás.
Os dados, portanto, parecem corroborar a hipótese de que, a partir de um centro de origem mais ou menos onde fica a atual Rondônia, os ancestrais dos guaranis e tupis teriam seguido duas rotas diferentes. Uma delas, rumo ao sul, teria chegado ao atual Paraguai e à região Sul do Brasil, enquanto a outra desceu o Amazonas e chegou ao litoral, espalhando-se então pelo Nordeste e pelo Sudeste.
Dados arqueológicos, como a variação dos estilos de cerâmica, indicam que esse processo andava a pleno vapor no início da Era Cristã. Com isso, os idiomas da família tupi ficaram entre os mais importantes da América do Sul (cerca de 40 dessas línguas ainda são faladas hoje).
Os mecanismos que levaram a essa expansão impressionante ainda não estão claros. Sabe-se que esses povos tinham dominado de modo eficiente a agricultura em ambientes de floresta tropical, e que sua cultura enfatizava a coragem guerreira e, com frequência, a antropofagia ritual, na qual o inimigo era devorado como forma de adquirir sua bravura.
Segundo Hünemeier, está nos planos da equipe realizar novos trabalhos tentando investigar as razões e a época da expansão em detalhes. A equipe também detectou, surpreendentemente, a contribuição genética de indígenas da América Central nos grupos guaranis, e a ideia é entender melhor esse fenômeno. “Isso provavelmente foi importante para diferenciar os guaranis como grupo.”
Outro caminho importante é estudar mais grupos atuais do litoral que ainda se autodeclaram tupis, como os tupinambás da Bahia e os potiguaras da Paraíba e regiões vizinhas. “Resgatar a história deles com mais essa ferramenta, além de nos ajudar a entender o passado, ajuda esses grupos a terem visibilidade, o que, nestes tempos, é muito importante”, diz a geneticista.
Também participaram do estudo pesquisadores da Espanha e da Universidade Federal do Espírito Santo.
Bahia Notícias