A dona de casa Jéssica Regina Silva mora em Francisco Morato, na Grande São Paulo, com o marido, seis filhos e quatro irmãos adolescentes em uma casa cedida pela igreja. Isto porque, no dia 2 de janeiro, ela perdeu tudo que tinha. A casa que estava construindo no Parque São Joaquim foi atingida por um imóvel que deslizou e desabou durante o temporal. “Foi um barulho forte, apagou as luzes e, quando acendeu, vi meu esposo desmaiado, cheio de sangue. Um bloco de concreto atingiu meu bebê e meu filho de 5 anos teve de passar por cirurgia”, lembra.
Como ela, ao menos 4 milhões de pessoas vivem em áreas de risco em todo o país, segundo o Serviço Geológico do Brasil. O mapeamento, no entanto, foi feito entre 2011 e 2020 em apenas 1.605 cidades, cerca de um quinto dos municípios brasileiros. O levantamento indicou 14.443 áreas com alto risco e 954 mil moradias nestas condições. Apenas em 194 municípios riscos não foram identificados.
“Esta é uma estimativa conservadora. O número é ainda maior e está se ampliando nos últimos 10, 15 anos. É um processo contínuo porque é preciso controlar o acesso às cidades, com planejamento urbano e de ocupação do solo. Hoje a ocupação é desordenada”, afirma o geólogo Renato Eugênio de Lima, que é consultor da ONU (Organização das Nações Unidas) para desastres naturais e diretor do Comitê da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para deslizamentos.
Apenas entre janeiro e junho, as equipes da CPRM, que é uma empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, identificou mais de 298 mil pessoas vivendo em áreas sujeitas a deslizamentos de terra, inundações, enxurradas, processos erosivos e queda de rochas, em 45 cidades de 17 estados.
O coordenador-executivo do Serviço Geológico, Julio Cesar Lana, explica que grande parte das áreas de risco no país estão relacionadas às inundações (34%) e aos deslizamentos (49%).
“Varia de região, mas, no norte do Brasil, inundações se sobressaem na bacia do rio Amazonas. Já no sudeste, há mais deslizamentos pela condição topográfica com áreas íngremes e encostas. Nos municípios litorâneos, é comum a ocorrência de erosão costeira/marinha. No sul e no nordeste, tem cerca de 50% de cada e, no centro-oeste do país, há mais alagamentos pela influência do Pantanal, com áreas planas e grandes rios”, detalhou.
Outra face perversa do problema é a desigualdade social. “Atinge pessoas de forma desigual porque a população de menor renda ocupa áreas de maior risco. Desastres ampliam as desigualdades no planeta. Afetam justamente os mais pobres que não têm condições de se reerguer sem ajuda”, enfatiza Renato Eugênio de Lima.
A afirmação é endossada também pelo geólogo Julio Lana: “A situação é reflexo da condição geológica natural e em função do processo de ocupação do território. Os de alta renda chegam primeiro e vão para áreas mais seguras, enquanto os de baixa renda ocupam as periferias, em áreas mais íngremes, às margens de córregos e estão mais propensos a riscos”.
Quem vive hoje em áreas de risco, muitas vezes já passou por outros endereços nesta mesma condição de perigo. É o caso de Jéssica Silva. Antes de se mudar para Francisco Morato, ela morava na Brasilândia, na zona norte de São Paulo, em cima de um córrego. O marido era traficante, foi preso e, ao ser solto, ela tinha receio de que ele voltasse ao bairro e decidiu então mudar de cidade.
A casa de alvenaria foi construída com materiais de doação perto de um barranco e de árvores grandes. Tinha dois quartos e cozinha. O que ela não contava era que outra casa, erguida sem muro de arrimo, sem telhado e com infiltrações, abandonada por uma família de baixa renda, viria abaixo.
“Perdemos tudo. Não sobrou fogão, geladeira, TV, tiramos umas camas meio moles. Ganhamos roupas, cobertas, mas aqui não tem guarda-roupa e nem espaço”, diz Jéssica.
Após o deslizamento, a condição financeira da família de 12 pessoas se agravou. O marido está afastado do trabalho porque teve de fazer uma cirurgia na coluna cervical e corria o risco de ficar tetraplégico. “Ele vai ter dores pelo resto da vida, o braço é dormente e não pode pegar peso. A gente não paga aluguel, mas paga água e luz. Se for alugar casa, como vamos comer?”, argumenta.
A família ficou traumatizada com tudo e agora luta para conseguir novas doações e reerguer a casa própria no mesmo terreno onde a antiga residência ficava. O imóvel foi demolido a pedido do engenheiro.
“Por um lado, não queria voltar a morar ali. Sempre vai ficar o medo e os mais prejudicados são as crianças. Quando chove, meu menino pergunta se vai cair outra casa aqui. Mas não temos condição nem de pagar um aluguel só com bicos. Eu nem durmo direito, mas não tenho outra opção”.
Hoje, segundo a Prefeitura de Francisco Morato, novos estudos do Plano Municipal de Redução de Risco indicam 103 áreas espalhadas em 163 setores, sendo 134 com risco de escorregamento, 10 com risco de solapamento e 19 áreas com risco de inundação, totalizando 5.984 edificações com 23.936 moradores.
Eliane Santana Luz Barros tem 29 anos, é moradora do Parque São Joaquim e vive em uma casa com o marido e a filha de 7 anos, construída na avenida Marginal Esquerda. “Já aconteceu duas vezes de entrar água em casa. A gente tem que correr para levantar eletrodomésticos. Fiz uma gambiarra com uma tábua na porta para a água não entrar e cavei em volta da casa”.
Ela viu tragédias acontecerem na região, com deslizamentos e feridos, e cobra atenção do poder público: “Aqui é um bairro esquecido. A rua é de terra, sem cascalho e falta saneamento. Quando chove, minha filha não consegue chegar na escola. Se precisar de socorro, as ruas são esburacadas, com barro e não passa táxi, Uber, lotação e ficamos isolados”.
De acordo com Eliane, os governantes só aparecem e fazem promessas em época de campanha e depois “colocam um pano para esconder a poeira”.
O mapeamento das áreas de risco é uma importante ferramenta para auxiliar os órgãos públicos na adoção de medidas de prevenção de desastres. O trabalho está a cargo do governo federal, que atua em conjunto com as prefeituras, o Ministério Público e a Defesa Civil.
O trabalho começou em 2011 após o desastre na região Serrana do Rio de Janeiro, que deixou 918 mortos em Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. A intenção é monitorar as áreas de risco, criar sistemas de alerta e embasar decisões de políticas públicas.
O geólogo Julio Lana destaca que o ideal é que as áreas sejam acompanhadas periodicamente porque a dinâmica das cidades muda muito: “O município tem que saber que não é responsabilidade apenas do governo federal o mapeamento. É preciso integrar governo estadual e prefeituras e buscar parcerias. O número de áreas de risco não cai porque as cidades continuam crescendo de forma intensa e desordenada. Enquanto se atua numa área, outras surgem”.
As áreas que serão objeto de estudo são definidas um ano antes. Os critérios para seleção são: indicação do Ministério, solicitação das cidades ou pedidos do Ministério Público e da Defesa Civil.
Os alvos destes municípios são elencados em parceria com a prefeitura e são priorizados os de maior risco. Já no local, as equipes observam indícios de deslizamentos, a condição dos imóveis e do solo, deformações, rachaduras, se há histórico de tragédias e se está em leito de rios e córregos.
“Áreas de risco são as que têm indícios, frente a um evento geológico, de causar perdas de vidas e danos de natureza econômica”, define o geólogo.
Após a etapa de campo, são elaborados mapas e relatórios. Todas as informações são públicas, estão disponíveis no site da CPRM e são enviadas aos gestores municipais e estaduais. A fiscalização cabe aos municípios e o Ministério Público tem papel relevante nessa cobrança.
Um bom exemplo, segundo Julio Lana, é a cidade de Espírito Santo do Pinhal, no interior de São Paulo. Em 2015, eram mais de mil pessoas em áreas de risco e, em 2018, caiu para pouco mais de cem. “Não diminuiu o número de áreas, mas sim a extensão territorial, com a construção de muros e adoção de outras medidas. Ainda existem riscos, mas são gerenciáveis”, exemplifica.
Os mapeamentos deste ano focaram em municípios do Ceará, Pará, Paraíba, Paraná, Acre, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rondônia, Sergipe, São Paulo, Piauí, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pernambuco.
Alguns estados já são 100% mapeados, como Espírito Santo, Amazonas, Acre, Santa Catarina e Rondônia.
O mapeamento tem o objetivo de evitar que tragédias ocorram. Inundações costumam afetar um número maior de pessoas e causar mais prejuízos materiais. Deslizamentos geram mais óbitos.
A população e os governos costumam se mobilizar durante os desastres e pouco atuam na prevenção. “Passado o momento da tragédia, a agenda do governo é esquecida até pela sociedade. Mas é na normalidade que temos de desenvolver os processos. Precisamos de uma estrutura de estado que aja de forma estratégica. Hoje a visão é reativa, de enfrentamento tático”, argumenta o consultor da ONU.
As frentes de atuação mais indicadas são mapeamento das áreas, execução de obras preventivas (muro de contenção, por exemplo), evitar novas ocupações ou construir casas de acordo com a região (palafitas em áreas de inundação) e implantar sistemas de alerta para impedir prejuízos materiais e vítimas.
Na última Conferência Mundial de Redução de Desastres da ONU, realizada em 2015 no Japão, foram estabelecidas quatro estratégias de enfrentamento: compreeensão dos riscos em todas as dimensões, fortalecimento da governança do risco, investimento de recursos públicos e privados em prevenção e melhorar a preparação, reabilitação e reconstrução pós-tragédia.
“Os três primeiros dizem respeito a atitudes anteriores ao desastre. O Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. O momento em que a sociedade mais precisa de conhecimento científico, de informação, é na tragédia porque gera muito medo”, explica o geólogo.
Renato Eugênio Lima defende que a cultura da resiliência seja ensinada em escolas públicas: “As pessoas são preparadas para agir em situações perigosas, como inundação, deslizamentos e até tornados. Tivemos um ciclone bomba no sul. É uma ferramenta-chave e nisso muitos municípios deixam a desejar assim como no planejamento urbano, que tem sido deixado de lado”.
Como o trabalho a ser feito é extenso, são necessárias mais equipes em atuação. “É importante que o governo federal e o estadual capacitem profissionais. Os municípios menores, em geral, não têm condições para isso”, afirma Renato de Lima.
Em nota, a Prefeitura de Francisco Morato informa que as “famílias estão há anos consolidadas nesses espaços, que não teve desenvolvimento urbano adequado e que hoje traz preocupação e novos desafios ao governo”. Destaca também que “não há mais no Governo Federal programas de habitação. No entanto, nossos esforços são constantes na fiscalização, visando conter a expansão das ocupações, e na busca de recursos para viabilização de programas habitacionais”.
Segundo a administração municipal, já foram realizadas sete grandes obras em área de risco na cidade. As moradias estão em sua maioria em encostas de declividade acentuada e em áreas de preservação ambiental. A prefeitura concluiu a nota informando que o problema é histórico e que, atualmente, as famílias notificadas recebem auxílio aluguel.
R7