No verão, os passeios de barco no litoral da cidade de Camden (estado do Maine, no extremo nordeste nos Estados Unidos) atraem tantos turistas que chegam a dobrar a população de apenas cinco mil pessoas do lugarejo. Mas, em setembro de 1994, o carnavalesco Milton Cunha não foi a turismo para o local. Aliás, como ele recorda, a nevasca dificultava muito a caminhada. O gelo vinha na altura do peito. A missão não era simples. Mas não por causa da neve.
Responsável pelo carnaval da escola de samba Beija-Flor de Nilópollis, ele foi tentar convencer a musa do ano seguinte a desfilar no Sambódromo em um enredo em homenagem a ela. A cantora lírica brasileira Bidú Sayão, com 92 anos, abriu a porta com um sorriso. “Sim!!” A resposta aqueceria o coração deles naquele momento e, também, quando fevereiro chegou.
Abertas as cortinas da memória, a cantora de ópera disse que o desfile do samba seria a grande homenagem que ela receberia em vida no Brasil. Uma surpresa que não vinha dos palcos, mas da Marquês de Sapucaí. Bidú Sayão (apelido de Balduína de Oliveira Sayão), essa foliã da erudição, nasceu em 11 de maio de 1902 (há 120 anos) e morreu em março de 1999. Ela fez a maior parte da carreira nos Estados Unidos, com presença constante no Teatro Metropolitan, de Nova Iorque, se apresentou também pela Europa. Os caminhos na busca de espaço fizeram com que ela recebesse críticas no Brasil como uma artista antipatriótica.
“Quando eu a convidei para o carnaval, ela disse que seria o canto do cisne. Então é a partir da expressão dela que eu crio os cisnes da Beija-Flor que fazem enorme sucesso. Ela desfilou no cisne negro e disse que era a grande homenagem do país a ela”. Ela sentia, enfim, um aplauso genuíno do “povão”, no calor carioca e brasileiro. Ela pediu para desfilar vestida de Carmen Miranda. “Ela teve, enfim, a noção de que era amada, querida, aplaudida pelo povo”, disse o carnavalesco em entrevista à Agência Brasil.
“Neste palco surge ela, Bidú Sayão
Sacudindo a passarela, quanta emoção
E a minha Beija-Flor, vem aplaudir
Bachianas e o Guarani”
(Refrão de Bidú Sayão e o Canto de Cristal, da Beija-Flor)
O carnavalesco recorda que ela se divertiu muito e ficou surpresa com o convite e com a repercussão. “Nos meus estudos, eu tinha ouvido falar de Bidú Sayão a vida inteira. A imprensa internacional a chamava de ‘Rouxinol Brasileiro’. Na escola de samba, poucos a conheciam porque, na avaliação do carnavalesco (que tem pós-doutorado em história da arte), a ópera circula em espaços restritos à intelectualidade. “Só que ela tinha uma pegada de ser cantada em praça pública”.
Determinação
O pesquisador Denis Allan Danniel, biógrafo da cantora, entende que realmente essa apresentação na escola de samba foi marcante para ela. O autor de Bidú: paixão e determinação (2019, 222 páginas) revela que ela se divertiu, chorou e agradeceu pela oportunidade de voltar ao Brasil. Ele, que rastreou de forma minuciosa, por quatro anos, os passos da longeva cantora e de pessoas que conviveram com ela, entende que a trajetória singular fez com que ela vivesse intensamente a profissão. Bidú não teve filhos. O interesse do biógrafo pela história da cantora ocorreu de forma inesperada.
Ao admirar, pelo rádio, as músicas do tenor sueco Jussi Björling, o biógrafo verificou que ele cantava acompanhado de uma mulher. Ao pesquisar, verificou que era uma brasileira. “Eu fiquei tão deslumbrado e emocionado, que passei a seguir o que ela fazia”.
Uma das observações principais de sua biografia é que o mundo era dela, mas Bidú fazia questão de espalhar o sentimento de brasilidade. “Ela, nos Estados Unidos e na Europa, era muito associada ao Brasil. A cantora fazia uma propaganda do país onde ia. Ela tinha muito orgulho de ser brasileira”. No entanto, diferente de hoje em dia, as notícias demoravam a chegar.
“Voz pequena”
Conforme revela o escritor Denis Daniel, a “voz pequena” da cantora brasileira fez sucesso estrondoso por onde passava. Os críticos estrangeiros dobraram-se ao talento. No Brasil, os principais compositores, como Heitor Villa Lobos, a reconheceram como uma cantora muito diferente.
“O que há de mais surpreendente era a trajetória dela. A persistência dela em obter sucesso mundial. E assim aconteceu: se transformou em primeira-dama da ópera”, avalia o biógrafo.
Ele considera que a cantora possuía uma inteligência musical aguçada e era extremamente sentimental e sensível. “Tinha um talento incomum para aprender e a usar as técnicas musicais que conhecia. Pra compensar a sua voz pequena, era primeiro uma atriz e depois cantora”.
“A mais importante”
Para o pesquisador Marcos Menescal, da direção artística do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Bidú foi a cantora brasileira mais importante da história. “A gente pode afirmar que ela foi a mais importante cantora no Brasil pela carreira que ela desenvolveu, uma carreira que nenhum outro cantor nacional teve”. Ele também enfatiza que a voz delicada, como um rouxinol, marcou a carreira da artista.
A cantora lírica Neti Szpilman, que é também soprano (timbre mais agudo) e tem carreira como solista de espetáculos eruditos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, concorda que Bidú Sayão deixou um legado imensurável, mesmo se tratando de uma arte que poucos têm acesso. Sonhava em chegar perto daquela cantora, o que ocorreu não no teatro, mas no sambódromo em 1995.
Neti presenciou com profunda admiração o desfile de Bidú Sayão, a cantora que é para ela, ao lado da norte-americana Maria Callas, principal inspiração na arte. “Ela estava muito concentrada no barracão com todos nós. Conversou conosco, mas estava bem atenta realmente na expectativa de uma apresentação. Fiquei muito impressionada com isso”. Ela recorda que Heitor Villa-Lobos dedicou para Bidú a obra Bachianas Brasileiras nº 5,
A cantora considera injustificadas as críticas que ela recebeu por viver fora do país. Para a cantora, era para Bidú ter sido mais enaltecida por tudo o que ela conseguiu. “Ela tinha uma ‘voz pequena’ e rara naquela época de vozes poderosas”.
Ainda mais levando-se em conta, como entende a artista, que o canto lírico traz as exigências parecidas com as de um “atleta”, com preparação extrema de corpo e voz. Bidú, como avalia Neti, era minuciosa e metódica para chegar a todas as paredes de um teatro e invadir os locais. “É muito desgastante para quem canta”.
Atualmente, Neti se prepara para um concerto camerístico sobre o músico Cartola, no dia 13 (em celebração à Abolição da Escravatura), no Teatro Municipal. “Em um paralelo, recordo que Cartola também se sentiu abandonado e desprestigiado. Com 54 anos, ele voltou à música. Nossos artistas precisam ser reconhecidos”.
Cada vez que sobe ao palco, a cantora diz que busca mostrar que o erudito não precisa estar longe. Pode estar ao lado, ecoando pelos corredores e paredes. “É difícil explicar o que é uma voz pequena”, diz o pesquisador Marcos Menescal. Nem é preciso explicar. Bidú, para os pesquisadores, artistas e público, continua gigante.
Agência Brasil