A paulistana Gabriela Shapazian, de 16 anos, está terminando o ensino médio, mas decidiu que não vai fazer o Enem nem tentar vestibular por agora. Ela escolheu passar o próximo ano se dedicando a uma causa que se tornou sua prioridade na vida: a crise dos refugiados na Europa.
Gabriela já viajou duas vezes para ser voluntária na Grécia ajudando migrantes da Síria, do Afeganistão e de muitos outros lugares que chegam de barco às ilhas do país que é porta de entrada à Europa.
Da primeira vez, em dezembro de 2015, a garota foi com a mãe para Lesbos, a ilha grega que mais recebeu refugiados. Da segunda, em junho deste ano, voltou sozinha para o país que se tornou o epicentro da crise.
Com passagem comprada para a terceira viagem no próximo mês de novembro, ela planeja ficar 50 dias ajudando nos campos da Grécia. Depois, deve ir para Calais, na França, que é atualmente o maior campo de refugiados da Europa. A garota tem planos também de ir em 2017 para o Líbano, país vizinho à Síria que recebe muita gente fugindo da guerra todos os dias.
Gabriela despertou para esse assunto por causa de sua mãe, a jornalista Kety Shapazian, de 49 anos, que há muito tempo tinha interesse nas notícias sobre a Primavera Árabe e o Oriente Médio. “Eu sempre falei muito da Síria em casa. O que está acontecendo lá me enlouquece. No passado, quando a crise dos refugiados chegou àquilo que a gente viu, a Gabi falou: ‘Compra uma passagem e vai ajudar em vez de ficar reclamando’. A gente começou a arrecadar meias e sapatos, porque os refugiados precisam muito. Em uma semana ela estava tão envolvida que falou: ‘Preciso ir junto”, conta Kety.
Em Lesbos, as duas brasileiras faziam de tudo. Recebiam os barcos que acabavam de chegar, preparavam chá, sopa e centenas de sanduíches para distribuir, separavam roupas para doação, guiavam os recém-chegados até os campos, faziam atividades com as crianças.
A rotina era pesada. Gabriela acordava cedo, às vezes antes das 5h, para receber os primeiros barcos que chegavam. “Eu estava sempre dentro d’água, bem na linha de frente. Ajudava todo mundo a sair, principalmente mulheres, idosos, crianças”, diz. À noite, ela costumava ir para os campos ajudar na limpeza e na organização. “Eu não tinha horário para estar lá. Às vezes dava 10 horas da noite e eu estava fazendo sanduíches: eram 500, 800 de uma vez”, conta a adolescente.
As duas presenciaram cenas duras, como a morte de uma senhora por hipotermia e de uma criança que caiu na água. Apesar de tudo, ambas têm ótimas lembranças da experiência. Além dos vários amigos que fizeram, o contato com os refugiados foi marcante. “A gente estava rodeada de tragédia, mas também de pessoas que estavam muito felizes de estar vivas. Nunca vou esquecer todos os abraços, os beijos, os carinhos”, diz Kety.
Gabriela diz que hoje seus melhores amigos são os que conheceu nessa jornada. E também tem boas lembranças da hora da chegada dos barcos. “Eles fugiram da guerra, passaram por muita coisa e ainda passariam por mais. Aquele era o primeiro momento de felicidade que eles tinham em muito tempo. Muitos chegavam chorando. Depois que estavam quentinhos, alimentados e seguros, a felicidade era geral”, descreve.
A viagem, que deveria durar 15 dias, acabou se estendendo por 45. As duas só voltaram porque as aulas de Gabriela iriam recomeçar. “Ela não queria sair de lá de jeito nenhum. Nunca vi essa menina chorar tanto”, lembra a mãe.
Flores
Logo após chegar ao Brasil, mãe e filha decidiram que Gabriela voltaria à Grécia nas férias do meio do ano. Para arrecadar dinheiro, passaram a vender arranjos de flores em garrafas enfeitadas. Até hoje essa é a maneira de conseguirem recursos para as viagens de trabalho voluntário. O projeto foi batizado de “Flores para os refugiados”.
Os arranjos custam R$ 15. Kety explica que 60% vão para as despesas da viagem e 40%, para custos operacionais dos arranjos. No início, elas vendiam as flores em um semáforo da cidade. Agora, ficam no Armazém da Cidade, espaço na Vila Madalena.
A segunda ida à Grécia foi a primeira viagem que Gabriela fez sozinha. Ela passou 15 dias ajudando em um acampamento informal no porto de Atenas, mais 15 no norte da Grécia e outros 15 em Lesbos.
Dessa vez, havia menos barcos chegando, e o principal problema eram os refugiados que ficaram no país após o fechamento das fronteiras da rota dos Bálcãs – por onde muitos pretendiam se dirigir à Alemanha e outros países mais ao norte. “Tem mais de 60 mil refugiados presos na Grécia em campos militares, ocupações anarquistas e centros de detenção, e vivendo em condições muito ruins”, diz Gabriela, que sabe de cabeça vários números e informações relativas à crise.
Preocupação de mãe
Kety diz que, apesar de ser uma mãe normalmente preocupada, praticou “o desapego” e reuniu coragem para deixar a filha ir. “Confio na Gabi. Ela é supercentrada. Eu colocava a cabeça no travesseiro e dormia. Eu me preocupo? Sim, mas me preocupo muito mais quando ela vai à padaria no Alto de Pinheiros e passam 15 minutos ela não voltou. Tenho medo de assalto, de sequestro relâmpago, de assédio sexual no metrô”, diz.
A próxima viagem de Gabriela também vai ser sozinha. A garota diz que não tem vontade de ir para outros lugares fazer turismo ou descansar, nem sente saudades da rotina que tinha antes – bem menos corrida, mas mais monótona, afirma. Atualmente, todo o tempo fora da escola ela dedica a ajudar nos arranjos de flores e a dar palestras sobre sua experiência.
“A gente precisa fazer alguma coisa. É a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra, aquelas pessoas precisam de ajuda”, diz a jovem.
A mãe dela diz que hoje as duas estão menos conformistas. “Nossa vida mudou completamente, mas para muito melhor.”
Kety diz também que muita gente questiona por que elas não ajudam brasileiros. “Sei que tem gente precisando aqui também, mas nós duas decidimos abraçar essa causa. Estamos falando de milhões de pessoas que precisam de ajuda, que sofreram traumas psicológicos”, afirma.
Gabriela ressalta que aprende muito a cada viagem e que hoje é feliz com muito menos. “Lá as coisas pequenas significam tudo para eles. Um balão que você mostra para uma criança, um esmalte que você empresta para uma mulher… Se você dá uma presilha de cabelo para uma menina, você faz o dia dela”, explica.
O plano da jovem é cursar psicologia em 2018 em alguma universidade fora do Brasil. Mas ela diz que por enquanto não se preocupa muito com isso. Sua prioridade está clara: passar o maior tempo possível se dedicando aos refugiados. “Eles são a vida da Gabi”, resume a mãe.
G1