O Ministério Público Federal e a Polícia Federal investigam um esquema de privilégios a presos da Operação Lava Jato no CMP (Complexo Médico-Penal), em Pinhais, região metropolitana de Curitiba. As suspeitas são que um seleto grupo – formado por políticos, ex-executivos e lobistas – teria acesso a aparelhos de telefone celular, internet, visitas íntimas, comida exclusiva, serviços de cozinheiro, segurança e zelador particulares. Além de usarem “laranjas” em cursos e trabalhos que servem para redução dos dias de cárcere.
Uma carta de 47 páginas, escrita à mão de dentro do complexo penal e entregue à Justiça e à força-tarefa da Lava Jato, reativou, no início deste ano, uma apuração aberta em 2016 sobre um suposto “regime especial” paralelo na ala 6 da unidade, desde a chegada “dos Lava Jato” – como este grupo é chamado pelos demais presos. Ao todo, a carta enumera 27 “fatos” – supostas ilegalidades ou infrações disciplinares – que beneficiariam o grupo.
Outros centros prisionais já apuraram casos de regalias envolvendo políticos presos. Em Brasília, uma ação da polícia no domingo (17) passado apontou benefícios ao ex-senador Luiz Estevão, no presídio da Papuda. No início do ano, o ex-governador Sérgio Cabral foi retirado do presídio de Benfica, no Rio, por ter acesso a comidas especiais e sala de cinema, entre outros privilégios. Cabral e Estevão negam.
Antigo Manicômio Judiciário do Paraná, o Complexo Médico-Penal – batizado assim desde 1993 – é um presídio localizado em Pinhais, sem muralhas. Visto por fora, foge ao padrão visual das unidades de encarceramento do Brasil. Com capacidade para 659 presos, a unidade abriga hoje cerca de 730.
A unidade passou a abrigar os detentos da Lava Jato em 2015, após a carceragem da PF se tornar pequena para o crescente número de detidos nas operações. Atualmente, são 52.
Divididos em dez celas da galeria 6, atualmente 12 presos condenados pelo juiz federal Sérgio Moro estão no CMP. Entre eles, o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (MDB-RJ), o ex-deputado petista André Vargas, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o ex-assessor parlamentar do PP João Cláudio Genu – os dois últimos chegaram na quarta-feira passada (20) após confirmação de suas condenações em segunda instância.
Vargas é suspeito de ser o líder do grupo, com poderes de mando dentro do CMP. Nem os procuradores nem a PF comentam as investigações em andamento. Em 2016, um procedimento foi aberto após denúncia de uso de celular e destruição de provas pelo empreiteiro Marcelo Odebrecht. Por isso, ele teria sido transferido em fevereiro daquele ano de volta para a carceragem da PF.
Vistoria em agosto de 2016 chegou a localizar um carregador de celular na cela 602, que era ocupada entre outros pelo ex-ministro José Dirceu, mas o aparelho não foi localizado. A carta que denuncia regalias diz que presos da Lava Jato “usam celular à vontade” no complexo.
A força-tarefa apura também a “permissão” de visitas íntimas – no CMP, é proibido – para “os Lava Jato”. “Não tem dia, nem hora exata, qualquer dia e qualquer hora pode ser o momento, sempre no horário de expediente, e não necessariamente toda semana”, relata a carta. Além de encontros com as “esposas”, o documento cita a presença de “garotas de programa disfarçadas de advogadas”.
O diretor do Departamento Penitenciário do Paraná, Francisco Caricatti, afirmou que não foi comunicado sobre as investigações nem tem conhecimento de supostas regalias no CMP.
O Sindarspen (Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná) informou que “desconhece qualquer denúncia contra agentes penitenciários, que supostamente estariam favorecendo presos da Lava Jato”.
A defesa de Vargas disse que desconhece eventuais benefícios ao ex-deputado petista. Procuradas, as defesas de Marcelo Odebrecht e de Dirceu não responderam.
Vargas o líder e Argello e o ‘rei do curso’
A carta escrita de dentro do CMP (Complexo Médico Penal) aponta o ex-deputado André Vargas, que se desfiliou do PT em 2014, como o líder do grupo de detentos que teriam regalias e o principal interlocutor com agentes e a direção da unidade. “Aqui dentro da carceragem do CMP, o líder deles é o André Ilário Vargas, assessorado por João Vaccari Neto e Jorge Afonso Argello (Gim Argello)”, diz o texto que motivou a reabertura de investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal sobre suposto esquema de regalias na unidade.
Segundo o relato, nas alas 5 e 6, as celas que têm grades e chapas metálicas na porta são abertas pela manhã e fechadas às 17h. Mas, no caso das que abrigam os “Lava Jato”, a tranca só bateria por volta das 21h30. “Por algumas vezes, o funcionário sequer fechou-os durante a noite, assim os cubículos dormem abertos. Isso foge totalmente ao protocolo de segurança do Depen Paraná”, diz o texto.
Vargas e Argello caminhariam “soltos” no corredor da ala 6, mesmo quando se institui toque de recolher no local, diz o relato. Os dois teriam ainda a segurança particular de uma dupla de detentos “pitbull” que “entra em ação para resolver qualquer problema que alguma pessoa tiver com um dos ‘Lava Jatos'”. “Na 6.ª galeria, tem quatro presos que são funcionários dos ‘Lava Jato’, prestando serviços exclusivos nos cubículos.”
Além de “segurança”, eles teriam “cozinheiro”, que seria responsável por pratos como bacalhau e risotos, e “zelador”. Banhos de sol em horas e dias proibidos também seriam parte das regalias. “Todos se indignam com essa situação”, afirma a carta. Segundo o texto, isso é discutido entre detentos e servidores, mas “ninguém tomou atitude” por medo de represálias.
Mais antigo dos presos da Lava Jato no CMP – desde 10 de abril de 2015, após condenação a 14 anos de prisão pelo recebimento de R$ 1,1 milhão em propinas de contratos de publicidade do Ministério da Saúde e da Caixa Econômica Federal -, Vargas busca o direito a passar para o regime semiaberto.
A Justiça, que havia concedido o direito, revisou a autorização depois que foi comprovado que o ex-deputado não pagou o valor cobrado como garantia para repor os prejuízos causados com os desvios na Saúde e Caixa. A comprovação de envolvimento em infrações disciplinares pode zerar a contagem dos dias que ele tem a abater, por ter feito cursos, trabalhos e leituras de livros.
A advogada de Vargas, Nicole Trauczynski, disse que desconhece eventual benefícios no CMP e que o assunto é questão administrativa da unidade. Segundo ela, por lei o cliente tem direito à progressão, indeferida pela Justiça, mas que houve recurso. Procurada, a defesa de João Vaccari também negou a existência de benefícios dentro do presídio.
‘Laranjas’
A Lava Jato apura se os presos da ala 6 têm contratado outros detentos para cumprir as funções de trabalho ou estudo – que, executados, contribuem para a redução da pena. O Conselho da Comunidade diz que as atividades laborais para presos no Paraná atingem 10% dos cerca de 33 mil encarcerados. No caso dos “Lava Jato”, 100% teriam acesso.
O ex-senador Gim Argello, por exemplo, é apontado “como o rei do curso” no CMP. Formou-se em cursos de automação e gestão de negócios e trabalhos de manutenção interna, como troca de lâmpadas e pintura de paredes, e resenhou 20 livros. Condenado a 11 anos e 8 meses de prisão, ele pediu o abatimento de 412 dias de pena. Mas teve cassado 114 dias de desconto da pena, em março pelo Tribunal de Justiça do Paraná.
Ele não comprovou a veracidade dos diplomas de mestre em espanhol, eletrônica básica, instalações elétricas, obras e edificações, rádio e TV e agropecuária. Também teve negado o abatimento de dias por prestar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), em 2016.
A Justiça considerou que, além de notas ruins, o benefício era indevido pois a lei prevê remição quando o preso adquire novo conhecimento – Argello é formado em Direito.
O advogado Marcelo Lebre, que defende Argello, disse que as acusações de regalias para os presos da Lava Jato são “uma grande falácia”. Segundo ele, a unidade tem problemas, em especial de acesso das defesas aos clientes.
Vistoria
Na última quinta-feira, 21, a nova corregedora-geral do Depen (Departamento Penitenciário do Paraná), Lúcia Beloni, iniciou, exatamente pelo CMP, uma série de vistorias nas 33 unidades do Estado.
“Consideramos uma unidade especial não só por abrigar os presos da Lava Jato, mas também pela questão dos presos em medida de segurança”, disse. A vistoria encontrou apenas alimentos fora do padrão, em pequena quantidades, em algumas das celas. “Em relação a essa ala, eu averiguei cela por cela. Levantamentos tudo, vistoriamos tudo. Mas nada que indicasse um sistema de regalias para esses presos. Muito pelo contrário.”
A vistoria durou 12 horas. Segundo a corregedora, ela ouviu de dois presos que nessas alas “eles são bem tratados e que não tinham uma reclamação”. “Perguntei da alimentação, do banho de sol, da leitura, do trabalho, da limpeza. Então não posso anotar um fato que não ocorreu.”
Segundo o diretor do Depen, Francisco Caricati, “o objetivo dessas correições é justamente evitar qualquer tipo de distorção que possa existir nas unidades penais”.
A Lava Jato apura a existência de uma sala onde os itens proibidos seriam levados durante as fiscalizações. Segundo a carta entregue à Justiça, os detentos que gozam de regalias “maquiam e escondem o que não querem que vejam” antes das vistorias.
R7