A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados promoveu nesta quinta-feira (29) uma audiência pública para debater a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 32/2020) da reforma administrativa enviada em setembro de 2020 ao Congresso Nacional. Especialistas e líderes partidários disseram na audiência que, no formato em que se encontra, o texto terá efeito oposto ao pretendido, no que se refere a dar fim a privilégios no serviço público.
A audiência teve, entre seus debatedores, o presidente da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), Lademir Gomes da Rocha. “Essa proposta de reforma administrativa apresenta problemas que fazem com que não sirva às propostas às quais diz pretender realizar. Da forma como foi estabelecida, aponta como soluções elementos que agravam problemas que já verificamos na administração pública”, disse Rocha ao iniciar sua fala.
Segundo ele, é importante que qualquer reforma preserve garantias fundamentais à adequada proteção do interesse público. “Não é isso o que a proposta iniciada pela PEC 32 apresenta. Além do mais, faltam, a ela, dados, estudos e projeções que justifiquem as mudanças propostas”, acrescentou ao apontar quatro aspectos da proposta que, segundo ele, “são especialmente graves”: a ausência de critérios para a definição das carreiras típicas de Estado; o ingresso [no serviço público] mediante vinculo de experiência; a criação de cargos de liderança e de assessoramento; e a fragilização da estabilidade dos atuais servidores.
Com relação à ausência de critérios de definição das carreiras típicas de Estado, o presidente da Anafe argumenta que o ideal seria que houvesse ou uma “enumeração ainda que não exaustiva” dos cargos ou uma definição de critérios materiais para definição posterior.
“O ingresso mediante vínculo de experiência nos causa profunda preocupação, na medida em que ou não se está experimentando esse candidato – e, portanto, ele ainda não vai exercer as funções próprias do cargo ao qual ainda é candidato – ou estaremos em uma situação na qual conferiremos a uma pessoa ainda não protegida institucionalmente, funções de representação do Estado brasileiro”, disse.
Na avaliação dele, este fato pode acarretar diversos problemas, como o acesso, por parte de concursandos, a dados estratégicos e sigilosos. “Um advogado público que teve acesso às informações confidenciais, e que não venha a ser selecionado ao fim, será certamente alvo de tentativas de cooptação. Ou mesmo um policial envolvido em atividades de investigação poderá ser posteriormente cooptado pelo crime organizado”.
Na crítica à criação de cargos de liderança e assessoramento, o presidente da Anafe argumentou que, no caso de exercício de atividades estratégicas gerenciais e técnicas, há riscos que vão além da amplitude e imprecisão semântica de termos usados na proposta.
“Os riscos abrangem também questões relativas à flexibilização das balizas atuais, concebidas para barrar o clientelismo e, o que é mais importante, a captura do Estado. No que se refere às funções estratégicas, o clientelismo pode ser definido como uma forma de captura. O que teremos é o agravamento dos problemas de seleção adversa e de risco moral, com risco de uso de informações privilegiadas, tráfico de influência e crimes contra a administração pública”.
Com relação ao quarto aspecto considerado “essencialmente grave” (a fragilização da estabilidade dos atuais servidores), o presidente da Anafe destacou que chama a atenção o enfraquecimento da garantia de estabilidade dos atuais servidores por meio da demissão por decisões ainda não transitadas e julgadas ou mediante avaliação periódica de desempenho “cujas balizas passarão a ser estabelecidas por lei ordinária, modificadas, portanto, por simples medida provisória”.
“O que assistiremos será o enfraquecimento do interesse público confiado aos servidores públicos. Até porque garantia da estabilidade não significa impunidade. Prova disso é que, em 2020, houve mais de 500 demissões de servidores”, completou.
Ex-secretário especial da Secretaria de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, Paulo Uebel, críticou o “modelo atual” da administração pública.
“O modelo atual fragiliza a democracia e a cidadania. O excesso de privilégio faz a população não confiar nas instituições públicas, a ponto de ridicularizá-las, muitas vezes. O modelo atual não é alinhado às melhores práticas internacionais e está 20 ou 30 anos atrasado. O modelo atual precarizou a capacidade do Estado brasileiro em fazer investimentos. Se continuar como está, o investimento publico será zero. Imagine uma sociedade em que o Estado não consegue construir escolas, hospitais e delegacias, nem comprar medicamentos”, argumentou.
“O modelo atual inviabiliza um terço dos municípios brasileiros, que não conseguem arcar com os custos da máquina administrativa. O modelo atual contribui para a concentração de renda e para a desigualdade social, uma vez que a média salarial dos servidores está deslocada da média salarial do país. O modelo atual dificulta a modernização e o uso eficiente dos recursos públicos, com o governo federal gastando mais de R$ 8 bilhões por ano com cargos e carreiras que já foram extintas. E o modelo atual prejudica a imagem e principalmente o trabalho de servidores excelentes”, acrescentou.
Parlamentares
Para o deputado Rui Falcão (PT-SP), Paulo Uebel não expôs, em sua fala, “nenhum dos fundamentos da reforma”. Segundo ele, os privilégios precisam ser removidos sim, mas a partir da votação da lei do extra teto, que são, de fato, os supersalários pagos a uma minoria do serviço público.
“Sim, o modelo atual é concentrador de renda, mas isso em nada se deve ao serviço público”, disse o deputado. A deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) disse que a fala de Uebel aumenta ainda mais sua convicção contra a reforma administrativa.
“Toda vez que apoiadores a defendem usam discursos abstratos e mentiras, no sentido de que acabaria com privilégios, quando na verdade ela amplia privilégios com os cargos de liderança e assessoramento que geram mais cabides de emprego no serviço público”, disse ao criticar a tentativa de desmontar a estabilidade de servidores, favorecendo atividades subsidiárias que podem ter contratos temporários com empresas privadas. “Teremos fábricas e empresas contratantes de professores”, exemplificou.
“Para se ter uma ideia, 60% dos servidores públicos têm média salarial menor que três mínimos. E 73% dos servidores públicos municipais têm média salarial menor do que quatro mínimos. São esses os que serão atacados. São as professoras e as enfermeiras que estão salvando vidas. E são os policiais que sequer terão estabilidade”, completou.
A deputada Érika Kokay (PT-DF) disse que não corresponde aos fatos o país ter máquina estatal inchada. “Temos 12% da população ocupada no serviço público. Nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] temos 21,3%”, argumentou. “Essa proposta de reforma administrativa estabelece poder absoluto do governante sobre servidores, retirando sua estabilidade”, acrescentou.
Agência Brasil