Primeira mulher a apresentar o “Hell´s Kitchen” no mundo, Danielle Dahoui diz que acabou a era de sofrimento no programa que ficou famoso pela histeria do chef Gordon Ramsay. Em suas mãos, o reality não ficou menos tenso na quarta temporada, atualmente exibida pelo SBT, mas destoou significativamente das anteriores em que os gritos de um irascível Carlos Bertolazzi atormentavam a vida dos participantes.
Amiga de Bertolazzi, a chef pernambucana garante que ele era um personagem com papel de carrasco. Os chiliques? Faziam parte do show. “Ele não teve a chance de poder ser quem ele é. A ideia de agora foi tentar uma coisa nova e de fazer disso um case. E vai virar um case! O objetivo é reproduzir o [novo conceito do] ‘Hells Kitchen Brasil’ em outros países em que já não dá mais certo ligar a TV para ver um chef espezinhando e humilhando todo mundo”, afirmou ela, que adiantou a confirmação da próxima temporada do programa para o ano que vem.
Dahoui recebeu a reportagem do UOLno Ruella Bistrô do Jardim Europa, em São Paulo, o último a ser inaugurado de um total de três de uma rede que completa vinte anos em 2016. Debaixo de uma árvore artificial que decora um dos espaços adornado por quadros e fotografias emolduradas espalhados pelas paredes, ela, que cresceu com a mãe e o padrasto em Petrópolis, no Rio, falou de sua história de vanguarda e do ambiente repressor para mulheres que encontrou no início da carreira nas cozinhas da França.
“Colocavam muita pimenta na minha comida, me ensinavam errado alguma coisa para o chef me dar um puta esporro… Esses chefs que a gente vê como o Gordon Ramsay são reais! Eu era chamada de burra no dia em que o cara estava feliz. Eles fazem de tudo para ver se você tem fibra e aguenta a pressão da cozinha”, disse.
A chef e empresária também lembrou do casamento com o ex-jogador Raí, pai de sua filha Noah, 11 anos, e contou que o assédio na época do romance com o jogador a fez abrir mão de um programa de culinária para a TV a cabo: “Eu não queria ficar conhecida como a namorada do jogador de futebol que iria apresentar um programa. É muito pouco. Isso me reduziria a nada”. Confira a entrevista:
UOL TV e Famosos: Você se percebe como uma mulher pioneira?
Danielle Dahoui: Eu me percebo e adoro isso! Na hora que me convidaram [para apresentar o Hells’Kitchen], primeiro eu não aceitei porque era um superamigo que apresentava. Então me explicaram que o Carlos Bertolazzi havia me indicado. Eu falei: “Será? Vou ter que maltratar alguém no programa?” E disseram que não era isso, para eu ser do meu jeito e que eu iria ser a primeira chef mulher do Hell’s Kitchen do mundo. Eu só perguntei: “Onde eu assino?”
Mas você é uma mulher de vanguarda desde antes do “Hell’s Kitchen”. Você foi uma das primeiras chefs a abrir um restaurante em São Paulo, quando esse ambiente era ainda mais dominado pelos homens…
Quando eu era criança, não me via como feminista. Mas sempre gostei de tirar as pessoas da zona de conforto e fazer elas pensarem sobre o assunto. Os amigos que eu tinha na escola, a forma como eu me vestia, as pessoas que eu namorava… Era sempre fora do padrão que esperavam de mim, de uma menina de boa família, branquinha e tal… Eu sempre namorava negão, tinha amigos gays, malucos… No mundo somos todos iguais, uns têm mais ou menos sorte – mas um não é pior ou melhor do que o outro. As pessoas precisam ser julgadas pelo caráter. Eu adoro ser feminista hoje em dia. É superconsciente.
Você começou trabalhando com confecção de roupa. Em que momento aconteceu essa guinada para a gastronomia?
A vida é que foi me levando. Nunca fui muito de pensar no futuro, tanto que não terminei a escola e não queria fazer faculdade. Achava que eu era muito nova para decidir o meu futuro – só queria fazer o que me dava prazer. Tive um relacionamento, quase um casamento, dos 17 aos 21 com uma pessoa de quem eu era sócia na confecção. Naquela época eu me separava por causa de traição, diferentemente de hoje em dia (risos). Perdi minha melhor amiga num acidente de carro e falei: “Tenho que viver por nós duas”. Eu me separei, deixei a confecção para ele e fui para a Bahia onde tive uma barraca na praia em Arraial d’Ajuda, onde vendia sanduíches, tortas…
Hoje uma traição não seria um problema?
Eu acredito totalmente na relação monogâmica. Mas também acho que sendo combinado e tendo uma relação aberta, também é possível ser superfeliz. Tendo diálogo, tudo dá certo. Você tem que encontrar a sua receita da felicidade. Claro que uma traição é sempre muito doída, porque não foi combinada antes. Por isso se chama traição. É como quando eu contrato um colaborador. Se eu não pagar o que havia combinado, foi quebrar o que foi acordado entre a gente. Isso é uma traição.
O meu último marido me traiu várias vezes, mas não me separei dele por isso. Mas quando eu era mais nova era algo que matava…
Você está falando do Raí?
Sim, é o Raí. Esqueci de falar esse detalhe (risos).
Ele é o pai da sua filha. Como é a relação de vocês hoje?
Isso não é nenhum problema, tanto que somos superamigos. É o meu papito, é o pai que eu não tive. Ele é o pai da minha filha e o meu também. Qualquer coisa eu pergunto para ele. Quando estou apaixonada por alguém, discuto com ele, sabe? É uma pessoa maravilhosa.
Você já era uma chef e empresária respeitada quando namorou o Raí. O interesse, até então, era no âmbito profissional. Foi difícil o assédio pela sua vida pessoal?
Foi um saco! Foi a parte mais difícil. Eu estava começando a desenvolver o piloto de um programa de culinária. Isso doze anos atrás. Foi um sufoco conseguir apresentar para o canal GNT. Era um sonho que eu tinha, de mostrar uma culinária construtivista e tudo mais. Só que eu me apaixonei loucamente. Logo depois que o conheci, seis meses depois, a gente engravidou e eu dei para trás. Não queria ficar conhecida como a namorada do jogador de futebol que agora vai apresentar um programa. É muito pouco. Isso me reduziria a nada. Não que eu seja contra as mulheres que começaram assim, que mostraram que são capazes. Não estou diminuindo elas, só estou falando de mim.
Mas você já tinha uma trajetória. Por que não se apegou a isso?
Porque as pessoas não se apegaram a essa trajetória. Eu abri um restaurante novo no Rio, que se chamava Bar do Lado, que bombou desde o primeiro dia. Foram me entrevistar para falar só sobre o restaurante novo. Aí a repórter fez uma pergunta sobre o Raí, que eu respondi muito mal e a matéria inteira foi falando sobre a minha relação com ele, que eu estava grávida e no final dizia que eu estava abrindo um restaurante novo. Nem o nome do restaurante colocaram. Aquilo para mim foi uma punhalada tão grande que eu fiquei anos sem dar entrevistas e sem ir a programas de TV. Eu sabia o que eles queriam e esse assunto não interessava. Até porque eu tinha tido uma filha e era uma superexposição.
Depois da Bahia, você foi para a França, onde arranjou emprego lavando prato. Sente que houve discriminação?
Não foi discriminação, porque eu não tinha conhecimento nenhum. Não tinha outra área que eu pudesse trabalhar que não fosse aquela. Ali eu não sofri nenhum tipo de preconceito, mas em todas as outras cozinhas que trabalhei na França me olhavam e falavam “Ai, imagina, é mulher… Essa aí não vai durar um mês”. E faziam de tudo. Esquentavam a panela e me davam para eu queimar a mão. Colocavam muita pimenta na minha comida, me ensinavam errado alguma coisa para o chef me dar um puta esporro…
Esses chefs que a gente vê como o Gordon Ramsay são reais. Como o trabalho na cozinha é uma pressão muito grande, você tem que ser muito forte. Eles te testam fazendo você passar por situações horríveis – chamando você de burra, jogando prato, panela, te xingando… Eu era chamada de burra no dia em que o cara estava feliz. Eles fazem de tudo para ver se você tem fibra e aguenta.
E você aguentava?
Eu aguentei todas. Eu segurava. Extravasava voltando para casa de bicicleta, às vezes chorava um pouco no caminho, ou pedia para ir ao banheiro e dava uma choradinha… Quando caía uma lágrima eu disfarçava, mas segurei todas porque aquilo só me fortalecia. Falavam para mim: “Você vai voltar para o Brasil e vai cozinhar para um marido rico”. Aquilo me deixava louca.
Hoje ambiente da cozinha ainda é muito hostil para mulheres?
Sim. É muito difícil. São poucas as mulheres que seguram. Quando voltei para o Brasil, eu contratava as pessoas, quase todas vindas do nordeste, e alguns [homens] ficavam irados quando começavam a trabalhar. Não queriam me respeitar de jeito nenhum… [Diziam] “Essa mulher? Cala boca. Quem você está pensando que é para mandar em mim? Chama teu marido para vir aqui com você”. Várias vezes eu tive que mandar embora. Teve um que veio para cima mesmo, que eu tive que pegar o cara e jogar em cima da chapa para todo mundo falar: “Meu deus, ela é louca, é melhor respeitar”. Mas essa foi a única vez que essa cena aconteceu. Alguns colaboradores que estão comigo desde que abriu [o bistrô Ruella] comentam até hoje: “Olha, ela é brava, hein?”.
Principalmente no começo, eu tinha que mostrar que era capaz. Se eu ficava nervosa, era porque eu estava de TPM. Se eu falo baixo, é porque sou mulherzinha. Um homem, se fala baixo, é homem. Se grita, é homem. Isso nunca muda. Para gente ainda muda. Quando alguém fala “Ela está de TPM”, eu já olho e ele pede desculpa.
No “Hell’s Kitchen”, houve discriminação com alguma mulher?
Não. Até porque era eu a chef. Desde o momento que cheguei no programa, recebi uma equipe que me tratou muito bem e me respeitou. Até hoje é “Sim, chef”, “Não, chef”. Zero discriminação.
Você acompanhava programas de culinária antes do “Hell’s Kitchen”?
Muito pouco. Já tinha visto o “Hell’s” com o Bertolazzi, que é meu amigo, logo que começou. Também vi programas da Rita Lobo, do Felipe Bronze, da Carole Crema. Mas eu assistia mais para vê-los do que pelos programas em si. Eu sou muito fã da Raíza [do programa “Rainha da Cocada”, no GNT]. Ela é divertida, criativa, moderna…. De todos, é o que eu mais gosto, mas todos são muito bons.E o “MasterChef”?
Também. Eu amo a Paola [Carosella] e o Henrique [Fogaça]. Os dois. Não gosto muito do [Eric] Jacquin e do que ele representa. É uma pessoa que maltrata os funcionários e que tem processos trabalhistas. Ele faliu cinco restaurantes e saiu devendo todo mundo. Não pagou as pessoas.
Você sabe dessas histórias?
Sim. Eu já tive colaboradores dele. Qualquer chef de cozinha que você conversar sabe disso. Agora ele vai apresentar um programa [versão do “Kitchen Nightmares”, na Band] em que ajuda a salvar restaurantes. Mas como uma pessoa que faliu todos os restaurantes em que trabalhou, que tem milhões de processos trabalhistas, vai fazer um programa desses? É tudo muito falso. Isso sempre me cansou na mídia e nos produtos que são vendidos. É tanta coisa tão de mentira…
Como vê a presença dele no “Masterchef”?
Acho que lá ele é superimportante. Ele mostra ser aquela pessoa chata, que critica… Ali ele é um fofo.
Na vida real, então, ele é pior?
Pergunta para qualquer chef que não faz tipo que ele vai te falar (risos).
Além das selfies, o que o “Hell´s Kitchen” trouxe para a sua vida?
Trouxe uma adrenalina e um frescor. Trabalho com isso há 26 anos, sendo vinte como proprietária. Não é que eu esteja cansada, mas já não me traz uma adrenalina muito grande. Eu estava querendo me reinventar. Queria uma coisa nova e apareceu esse convite.
Dizem que tem um bichinho que pica você que se chama TV. Ele me picou inteira e eu me apaixonei, desde pela pré-produção, roteiro, provas, lidar com as pessoas, cenário, figurino, iluminação, edição. É um tesão. Se eu não ficar na frente das telas quero ser diretora ou alguma coisa assim. Sabe quando você se apaixona por alguém? Eu tenho essa sensação. Estou apaixonada por essa experiência.
No que você acha que mais se diferencia do Bertolazzi?
O Berts tinha que seguir um padrão. Ele não teve a chance de poder ser quem ele é. Ele seguiu o padrão “Hell’s Kitchen” inspirado no Gordon Ramsay, como todos do mundo. Agora, no Brasil, a ideia foi tentar uma coisa nova e fazer disso um case. E vai virar um case. O objetivo é reproduzir [a fórmula do] “Hell’s Kitchen Brasil” em outros países nos quais já não está dando mais certo ligar a TV para ver alguém espezinhando e humilhando todo mundo.
Os telespectadores cansaram dessa fórmula?
Cansaram. Em países como o Brasil, em que as pessoas não têm os direitos básicos respeitados, que são violentadas pelo preconceito velado, você acha que a pessoa vai chegar em casa e vai querer ver uma reprodução do que ela vive todos os dias?
Como você definiria essa nova versão do “Hell’s Kitchen?”
Acho que é uma versão humanista. O Gordon mesmo já está mudando. Quem quer ser maltratado, humilhado? Você já está puto que errou e ainda vai ser humilhado por aquilo? Para quê? Não consigo entender essa lógica. Por que você vai querer trabalhar para alguém que te xinga, te chama de burro? Para que você vai passar por isso? Eu passei por tudo isso e é a última coisa eu quero.
uol