Pau-Brasil aborda questões sociais e leva mudanças para jovens, indígenas e homossexuais
Flávio Rosário – ANF
Nos centros brasileiros, as possibilidades de os jovens participarem de alguma companhia de teatro são grandes, pois, obviamente, as maiores cidades do país oferecem mais possibilidades de acesso aos espaços culturais. Mas isso muda quando essas oportunidades se refere as cidades pequenas, principalmente em locais, os quais não têm atenção dos órgãos públicos.
Esses municípios sofrem com a falta de espaços teatrais em seus territórios. Entretanto, no sul da Bahia, moradores de uma pequena cidade vem mudando esse cenário.
Além de ser importante historicamente para o Brasil, a cidade de Pau-Brasil mostra que a população resiste aos problemas sociais locais, através da cultura. De acordo com o Instituto de Geografia e Estatística, Pau-Brasil tem um pouco mais 10 mil habitantes, dividida entre comunidades negra, urbana, rural, e, sobretudo, indígena.
No município, jovens participam da Companhia de Teatro Negro Mário Gusmão de Pau-Brasil, que tem a intenção de trazer reflexões acerca das questões raciais e sociais da sociedade.
“Com a minha entrada no ano de 2020 na Cia de teatro, eu pude apresentar ideias e abrir os olhos diante da sociedade sobre racismo, machismo, feminicídio, tudo isso por meio da arte. Além disso, tive oportunidade de viajar para terreiros e entender mais sobre o candomblé e sua cultura”, fala o jovem ator da companhia de Teatro Negro Mário Gusmão de Pau-Brasil, Luan Silva do Vale, de 20 anos.
Ele revela que a experiência de participar de uma peça teatral é única e não dá para explicar. “São experiências únicas que não dá pra definir, só sentir. A vivência é uma explosão de cultura em um espaço tão pequeno como Pau- Brasil. São aprendizados culturais indígenas, das zonas rurais e de uma parte específica da cidade; cada um com suas particularidades”, conta alegremente.
O jovem expressa que o teatro influencia na própria vida de forma positiva. “O Teatro influência na minha vida como um todo: na forma de pensar, de andar, de agir, ou seja, na forma de ver o mundo, sempre olhando de forma artística para tudo”.
Além do ator, a jovem Milena Silva de Jesus, de 22 anos, também faz parte da companhia como atriz. Ela explana que o grupo de Teatro Negro Mario Gusmão surge como um agente interventor que busca tirar os jovens dos caminhos ‘errados’ e proporciona uma nova direção a ser seguida. “O teatro é fundamental para a sociedade, porque ele salva vidas”, afirma.
Para a jovem, após adentrar na companhia a vida mudou, pois antes era uma pessoa que não dava muita importância as questões sociais e raciais da sociedade, no entanto depois do teatro tudo mudou.
“Amadureci bastante após entrar no grupo, em razão de lidamos com diversos tipos de pessoas, conhecemos várias comunidades e histórias que nos tocam fazendo questionarmos sobre várias temáticas socias. O teatro me fez olhar com mais empatia, a respeitar a religião do outro mesmo que seja diferente da minha ou do que eu acredito”, conta.
Ela, que diz ser é uma mulher em constante mudança, entrou para a companhia em 2021 a convite de Josivaldo Câmara (diretor da Cia). “A juventude agradece por ter pessoas como Josivaldo, que mesmo com tantos atritos, continua criando projetos para incluir o jovem”, fala agradecida.
Companhia de Teatro Negro Mário Gusmão de Pau-Brasil
“Queremos levar a partir da arte cênica, no teatro, uma reflexão sobre os jovens negros que são assassinados diariamente nas periferias brasileiras, sobretudo, nos grandes centros. Além disso, levar o jovem a entender que a educação ainda é o melhor caminho para galgar um sonho, para mudar o seu contexto social”, profere com entusiasmo, Josivaldo Felix Câmara, 47 anos, Diretor e Idealizador da Companhia de Teatro Negro de Pau-Brasil.
Ele, que é professor de Arte, da educação formal, na escola Centro Educacional Maria Santa, do município de Pau-Brasil, revela que criou a companhia em 2008 quando percebeu que na escola, na qual trabalha os alunos não compreendiam assuntos sobre questões raciais.
“Quando começamos a trabalhar as questões raciais, os estudantes começaram a ficar incomodados pelo desconhecimento do tema. Muitos só ouviam falar das questões raciais, indígenas e quilombola em datas específicas ou quando o livro didático trazia um capítulo ou um subtema para que o professor dialogue com os estudantes”, pontua.
A partir dessas dificuldades, ele começou a pensar em estratégias, metodologias e didáticas para que esses alunos começassem a compreender melhor os conteúdos que dialogassem com as questões raciais.
“Eu trabalhei alguns textos com os meninos em sala de aula, e pedir que eles levassem para casa e estudassem para depois apresentassem na escola. O texto era dividido para os grupos e cada um deles explicavam os parágrafos. Tudo isso foi uma estratégia da realidade que encontrei enquanto professor para aplicar nas aulas. A partir disso, formamos a Companhia de Teatro Negro Mário Gusmão de Pau-Brasil”, esclarece.
Com isso, a companhia começa a desenvolver a cultura local a partir das apresentações teatrais. O professor destaca que isso é uma forma de colaborar com todos os municípios das comunidades: indígena, rural, ribeirinha, trabalhadores rurais e os sem terra.
“Eu acho que a cultura ela chega mais rápido aos olhos e os ouvidos das pessoas a partir desse diálogo através do texto escrito, uma vez que na realidade o texto escrito ele vai fazer um cruzamento, ou melhor, uma encruzilhada com os nossos corpos, que é transformado em falas, gestos e ação em cena. Esses textos vão formar o corpo, ganhando vida a partir do teatro”.
De acordo com Josivaldo Câmara, a Companhia de Teatro Negro Mário Gusmão (ganha esse nome para homenagear um dos primeiros atores negros da Bahia) de Pau- Brasil é um grupo formado por jovens, indígenas, homossexuais e adolescentes da periferia da zona da rural da cidade.
“O nosso teatro é uma companhia que dialoga muito também com a proposta de Augusto Boal e Abdias do Nascimento, os quais ensinam a gente abraçar e acolher os oprimidos. Em outras palavras, damos voz e o protagonismo aos artistas negros dentro de uma sociedade brasileira e focamos em receber jovens, indígenas e LGBTQi+”, fala com agrado.
E uma das alegrias do professor durante esse percurso de 2008 até 2022, é ver a transformação dos jovens.
“A gente ver a mudança dos jovens atores e atrizes para melhor. Ver um menino que entrou na companhia que usava droga e não socializava e depois do grupo ele conseguiu se transformar positivamente. Além disso, o reconhecimento da comunidade de entender que a companhia é importante nesse diálogo intercultural. Tudo isso é incrível”, salienta, contudo, completa: “não foi fácil o início da nossa trajetória”.
Por falar em problemas, um dos maiores desafios do projeto é a questão financeira, uma vez que o grupo não recebe quase nenhum apoio financeiro.
“Manter um grupo que não tem um centavo para poder transitar e construir o que uma companhia de teatro realmente necessita, é complicado. Precisamos de figurino, de um caixa para pagar os atores e atrizes. Além de tudo, precisamos de um transporte próprio para transitar e colaborar com um diálogo entre os municípios e com a região sul baiana. Tudo isso é muito complicado, porém a gente consegue dar conta pela força de vontade desses adolescentes, das crianças, e nós enquanto mentor, diretor e orientador”.
Mesmo com todos os contratempos, a companhia ganha espaços e começa fazer parte do projeto chamado interlocuções, da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
“A gente vai para comunidade indígena apresentar esse teatro que é levar o que a gente tem discutido em sala de aula nessas comunidades. Nós levamos em vários lugares as discussões raciais e de gênero para fazer que os espectadores vejam esses corpos negros e indígenas em palcos apresentando uma reflexão para todos”.
O professor diz que o grande marco para a história da companhia aconteceu em 2016 quando fizeram um intercâmbio na capital baiana a convite do professor e escritor Nelson Maca.
“Ficamos por cinco dias com o bando de teatro Olodum e fizemos uma vivência importantíssima no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá com a saudosa Mãe Stella. Além de fazermos grandes apresentações no pelourinho”, pontua.
Para fazer parte da companhia, ressalta Josivaldo Câmara, o jovem deve ter disponibilidade, força de vontade e compromisso. A partir dos 12 anos de idade pode- se ingressar no grupo. Atualmente, a companhia tem cerca de 22 jovens e já se passaram no projeto aproximadamente 620 pessoas.
O diretor faz questão de ressaltar que a companhia não tem espaço fixo, pois os ensaios acontecem em praça pública, no passeio da escola, no meio da rua e no quintal de algumas casas. “Quando temos uma peça nova, que vai entrar em cartaz, geralmente a gente ensaia todos os dias de segunda a sexta, às vezes no sábado, contudo quando a peça toma corpo a gente geralmente ensaia duas ou três vezes por semana”.
O grupo também oferece oficinas gratuitas que acontecem geralmente nas escolas públicas. “Geralmente, os diretores das escolas públicas nos cedem os espaços da escola para a gente aplicar as oficinas e ler os textos”.
As oficinas são: dramaturgia, cenografia, marcação de cena, leitura de texto dramáticos, interpretação de textos, racismo, feminicídio, homofobia, intolerância religiosos, entre outras temáticas.
Para a orientadora da companhia, a professora Luzia de Jesus Costa Santos, de 62 anos, a companhia tem um papel importante na cidade de Pau-Brasil, – acolher os jovens marginalizados.
“Em nossa companhia existem jovens de várias personalidades, de vários comportamentos e muito deles são pessoas marginalizadas. Todavia, a gente sempre está levando uma palavra amiga para poder acolher esse jovem. O nosso objetivo é tirá-lo do mundo das drogas e da marginalidade. Eu trabalho com esse jovem conscientizando-o, educando-o e mostrando o caminho que ele deve seguir: ser cidadão de bem”, destaca.
Já a coordenadora pedagógica do grupo, Maria Rita Santos, salienta que a companhia de teatro ou qualquer outra organização negra nas periferias está fazendo justamente aquilo que o Estado brasileiro deveria fazer e não faz: criar resistência.
“Organizar resistências por meio da cultura, já que quando você ler e estuda um texto e coloca ele em linguagem de teatro, você cria um movimento de resistência. E essa resistência ela se dá em virtude desse coletivo. No teatro, os jovens se organizam para pensar e discutir texto e teatralizá-los. A resistência negra se dá no ambiente universitário, no ambiente da educação básica, então são táticas de resistências negras que a gente tem”, afirma.
Teatro aos Quintais
O diretor da companhia Josivaldo Câmara explica que a ideia de levar o teatro aos quintais das comunidades periféricas, nasceu quando um dos atores disse que a família deles não conseguiam assistir as apresentações, já que uma grande maioria mora na zona rural e outras não têm condições de sair de casa por causa da dificuldade do horário e dos afazeres doméstico, além da idade.
“A partir disso, fizemos um mapeamento dos quintais e criamos o projeto chamado Teatro vai aos Quintais com a peça ‘Corpos Negros que Tombam nas Periferias’, escrita pelo dramaturgo da companhia de teatro, Francisco Nascimento. Lembro que inicialmente pensamos em um quintal que coubesse 30 pessoas, mas o primeiro quintal que nós fizemos ele era tão grande que ele coube mais de 200 pessoas. Ficamos chocados com esse número de pessoas que foram nos assistir”, lembra com alegria.
O diretor diz que essa iniciativa de levar o teatro aos quintais das casas é muito importante em Pau-Brasil. “Foi justamente levar reflexões para essas pessoas por meio do teatro em espaços jamais pensado, no quintal de uma casa, é muito significante. Levamos questões muito sérias para serem dialogadas. Então tudo isso foi muito expressivo, não só para os atores, porém também para o envolvimento das comunidades”, conclui.
Além do idealizador e dos jovens, fazem parte da companhia: dramaturgo, Francisco Nascimento; designer gráfico, Francisco Benevides; coordenação pedagógica, Maria Rita Santos; orientadora, Luzia Costa.