Ygor Coelho lembra com clareza das vezes em que deu “susto” em pessoas nos clubes mais tradicionais de São Paulo. Certa vez estava na fila da lanchonete. Uma senhora olhou para trás e não escondeu o preconceito. “Nossa, pensei que fosse um bandido”, disse ela ao perceber a raqueteira nas costas do atleta negro. Ygor é a principal referência brasileira no badminton e estava competindo no clube.
Atos de discriminação se repetiram em outros clubes e bairros elitizados. “Estava andando na calçada em direção ao local de competição. Via pessoas entrando dentro de lojas de repente, um pouco assustadas. Dentro de um clube, vi um casal à frente, que mudou de trajeto quando me viu”, recorda o carioca de 24 anos.
Em todas estas situações, Ygor reagiu da mesma forma: “Fiquei paralisado, sem reação”. Para ele, a falta de reação se justifica em parte pela falta de informação sobre discriminação. “Estou aprendendo sobre racismo, acho que eu não sei muita coisa ainda sobre o assunto”, diz, apesar de sentir na pele a força do preconceito.
Diante da urgência do assunto, iniciativas ainda tímidas aparecem em diversas modalidades esportivas. Perto da Olimpíada de Tóquio, o COB (Comitê Olímpico do Brasil) resolveu ir mais fundo. Criou um curso de enfrentamento ao racismo, a ser lançado no dia 6 de abril. Será obrigatório para qualquer brasileiro, seja atleta, membro de comissão técnica ou dirigente, que queira disputar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos deste ano.
“As práticas racistas não se sustentam mais. O racismo é algo que não é mais tolerado na nossa sociedade. Temos que trazer informação para que ele não ocorra mais, mesmo que seja de maneira velada. Sabemos que é desta maneira que ele se apresenta geralmente. E às vezes até de maneira aberta”, diz Rogério Sampaio, diretor-geral do COB.
O curso terá duração de 30 horas e será totalmente online e gratuito. Será possível se inscrever no próprio site da entidade. Trata-se de mais uma iniciativa do COB em combater a discriminação no mundo esportivo. Em março, a entidade lançou o curso de Prevenção e Enfrentamento do Assédio e Abuso no Esporte, também em formato online.
“(A discriminação) Nunca dá para levar na boa. Racismo me deixa sem palavras. Acho que um curso pode proporcionar esse conhecimento, vamos entender como funciona. Tem coisas que estão dentro do nosso vocabulário, palavras e expressões, como a a coisa tá preta… Se a gente se policiar, vamos viver num mundo melhor. Vamos ter voz”, comenta Ygor Coelho, que diz nunca ter sido alvo de racismo na Dinamarca, onde mora há quase três anos. Somente no Brasil.
O curso sobre racismo teve como embrião Lives realizadas em agosto sobre o tema, com a participação de atletas da ativa e já aposentados e especialistas, como a professora e filósofa Djamila Ribeiro. Ela é a principal referência do curso, que terá também a participação da ex-ginasta Daiane dos Santos e do coordenador do Programa de Ciências Humanas e Sociais da Unesco, Fabio Eon. “Fiquei bastante feliz com o convite. É a primeira vez que dou um curso assim tão específico, voltado para o esporte”, diz a autora do best-seller “Pequeno Manual Antirracista” ao Estadão.
Djamila escreveu a apostila do curso junto do professor Tiago Vinícius. O material, que será recebido pelos alunos, será a base das aulas gravadas em vídeo. “Será tudo muito didático. Trazemos desde os primeiros conceitos, passando pelo que é o racismo estrutural, racismo recreativo. Trazemos também uma lista de atletas que se posicionam na questão racial, com ilustrações. Uma das pessoas homenageadas é a atleta Melânia Luz, a primeira mulher negra brasileira a competir nos Jogos Olímpicos”, explica.
Para a especialista, o curso vai trazer esclarecimentos sobre o racismo para negros e brancos, o que deve contribuir para a redução de casos de discriminação no esporte. “A apostila vai levar esse conhecimento para as pessoas que já estão tão acostumadas (com o racismo) que não se informam sobre. É importante denunciar e cobrar para que as pessoas se informem sobre racismo. Um dos capítulos do meu manual é sobre isso: se a gente não se informa, não constrói intelectualmente reflexões críticas sobre isso e acabamos reproduzindo as mesmas práticas.”
O COB não revela números, por questões de confidencialidade, mas denúncias de racismo chegam ao seu canal de ouvidoria e são apurados pela área de Compliance e podem chegar ao Conselho de Ética. “O COB faz investigação e julgamento administrativos, o que pode ser crime é encaminhado para o órgão público competente. Já aconteceram casos assim”, conta Nelson Valsoni, que alega não poder dar detalhes sobre os casos. Mas revela que, de 2019 para 2020, houve aumento de 25% na procura pelos canais de ouvidoria, tanto para denúncias de desvios éticos ou discriminação quanto para tirar dúvidas.
O Código de Ética da entidade prevê advertência, multa de R$ 10 mil a R$ 100 mil, suspensão por até cinco anos e até banimento do esporte olímpico para atletas e dirigentes que venham a ser condenados por racismo. “Não tenho dúvidas de que muitas vezes os negros foram prejudicados e tiveram dificuldades para se desenvolver no meio esportivo”, diz Rogério Sampaio.
R7