Estatísticas da ONU mostram que, mundialmente, mulheres são a maioria dos infectados pelo HIV entre os jovens de 15 a 24 anos – faixa etária em que a epidemia tem crescido mais fortemente. O Brasil, no entanto, vai na direção contrária: dados divulgados pelo Ministério da Saúde nesta quinta-feira, Dia Mundial da Aids, mostram aumento da infecção entre homens jovens, e queda entre as mulheres.
Os números são impulsionados principalmente pelo aumento das infecções entre homens que têm relações homossexuais.
Nas últimas décadas, o número de casos de transmissão heterossexual era maioria, tanto para homens quanto para mulheres. No caso delas, continua sendo.
Mas em todo o país, a proporção de casos de infecção homossexual entre homens foi de 30,8% em 2007 para 50,2% em 2016. Em casos heterossexuais, ela caiu de 47,3% para 38,5% no mesmo período.
Mas por que isso ocorre?
Especialistas ouvidos pela BBC Brasil apontam razões que vão desde acesso maior das mulheres aos testes até o surgimento de aplicativos que facilitam encontrar parceiros sexuais, passando pela diminuição de programas de educação nas escolas.
Homens e mulheres
Em teoria, tanto homens quanto mulheres têm as mesmas possibilidades de contrair o vírus.
Segundo dados da Unaids, agência da ONU que cuida do tema, as mulheres eram 60% dos jovens de 15 a 24 anos com HIV no mundo em 2015.
Mas a estatística se deve, principalmente, à situação no continente africano.
“O sexo entre gerações diferentes está gerando essa epidemia entre mulheres mais jovens na África. É por isso que a maioria dos nossos relatórios foca nas mulheres. Mas a América Latina, principalmente a do Sul, tem uma epidemia diferente”, disse à BBC Brasil Georgiana Braga-Orillard, diretora do Unaids Brasil.
Os dados do Ministério da Saúde mostram que a taxa de homens de 15 a 19 anos infectados pelo HIV mais que duplicou nos últimos 10 anos (de 2,9 casos por mil habitantes em 2003 para 6,9 em 2015). O mesmo ocorreu na faixa de 20 a 24 anos (de 18,1 casos por mil habitantes a 33,1).
Já entre as mulheres, ela se manteve estável entre as meninas de 15 a 19 anos e chegou a cair entre as jovens de 20 a 24 anos.
Os números brasileiros seguem a tendência da América Latina, onde os garotos de 15 a 24 anos correspondem a cerca de 64% das novas infecções, segundo a ONU.
“No Brasil, falamos muito do jovem gay. O começo da epidemia era muito presente em homens que fazem sexo com homens. Mas no início dos anos 2000, o perfil começou a mudar”, afirma.
“Os pesquisadores acreditavam que a tendência seria a infecção de mais mulheres, mais pessoas no interior do país e mais pessoas pobres, por terem menos acesso a informação. Isso chegou a ocorrer, mas depois se reverteu.”
No Brasil, dados de 1990 até 1996 de fato mostravam mais homens a partir de 13 anos infectados com HIV do que mulheres.
Em 1997, no entanto, a situação se inverteu. Mulheres foram mais infectadas de então até 2011. E, em 2012, o ministério voltou a registrar mais casos de homens infectados do que mulheres.
Um dos fatores que fez com que as estatísticas mostrassem mais mulheres durante anos foi o maior acesso delas aos serviços de saúde, diz o sanitarista Caio Oliveira, oficial de HIV/Aids na Unicef Brasil.
“O Ministério da Saúde tornou o exame obrigatório em grávidas. Por isso, a notificação das mulheres aumentou. Quando os testes passaram a ser disponibilizados pelo ministério de forma mais abrangente, voltamos a perceber uma epidemia concentrada nas populações mais vulneráveis”, afirmou à BBC Brasil.
São consideradas populações vulneráveis no Brasil os homens que têm relações homossexuais, populações trans, profissionais do sexo e usuários de drogas, principalmente o crack.
Para a diretora da Unaids, a redução da infecção entre as mulheres também se relaciona com a “resposta forte” do governo brasileiro, que, em 1996, passou a ofertar medicamentos para o tratamento de Aids gratuitamente no país.
“O tratamento funciona também como prevenção, porque reduz enormemente a possibilidade de transmissão do vírus. Se isso não acontecesse, a epidemia se espalharia mais por mulheres e, consequentemente, por toda a população.”
“O advento do tratamento reduziu o número de pessoas com o vírus circulante. Por isso, ele voltou para as populações que são mais vulneráveis à epidemia”, afirma.
Mais parceiros
Para a infectologista Lígia Kerr, especialista em HIV/Aids da Universidade do Ceará, que produz estudos para o Ministério da Saúde, um dos fatores do aumento da epidemia entre homens são os aplicativos de paquera como Grindr, Tinder e Hornet, que facilitam as relações casuais.
“Temos uma revolução sexual muito intensa, que pegou tanto homens quanto mulheres. Notamos, entre os meninos, um aumento de parcerias homossexuais ocasionais. Um dia ele está afim de relação com homens e outro, com mulheres. É uma mudança muito impressionante na adolescência, uma flexibilização do que eles entendem como sexualidade”, diz Kerr.
“Vemos um número elevado de homens jovens que tiveram bem mais do que dez parceiros ou parceiras sexuais no último ano. Isso é muito diferente do que ocorria antes. Eles têm mais parceiros mais cedo.”
Caio Oliveira, que coordena um projeto da Unicef com o Ministério da Saúde para conscientização de jovens sobre o vírus, concorda que a facilidade de encontrar parceiros aumenta a probabilidade da infecção.
“O Unicef fez uma pesquisa em Belém e São Paulo, duas das seis cidades onde realizamos o projeto. Nas entrevistas com os adolescentes, eles dizem que depois do aplicativo a vida sexual aumentou 200, 300%. Se por mês transavam com três ou quatro pessoas, com o aplicativo transam com 10, 15.”
Em 2015, um estudo da Unicef focado na região da Ásia-Pacífico também concluiu que o uso de aplicativos de encontros estava associado ao aumento do HIV entre adolescentes de 15 a 19 anos.
Fisiologia
Na relação heterossexual mais comum – a penetração vaginal – a mulher é biologicamente mais vulnerável do que o homem à infecção, dizem os especialistas.
“Se a relação for vaginal, a mulher tem mais chances de contrair o vírus porque a área de exposição da genitália feminina é maior, e o sêmen masculino tem maior carga viral do que a secreção feminina”, explica Lígia Kerr.
Por causa da carga viral pequena na secreção feminina, o contágio entre mulheres homossexuais é raro, segundo a pesquisadora. No boletim do Ministério da Saúde, ele sequer é registrado.
Mas a penetração anal, mais comum entre homens que têm relações homossexuais, aumenta a vulnerabilidade.
“Durante o ato sexual, o ânus sofre mais lacerações (ferimentos) do que a vagina. Além disso, as mucosas do ânus e do tubo digestivo absorvem as secreções de maneira diferente da vagina. Há uma prevalência maior de infecções nesses casos”, diz Caio Oliveira.
Menos educação
Segundo Georgiana Braga-Orillard, da Unaids, os jovens atualmente têm menos acesso a informações confiáveis sobre sexualidade do que 15 anos atrás, apesar do uso da internet.
“Não há mais programas de educação sexual nas escolas. O Brasil teve vários programas, implementados inclusive com a Unesco. Mas nos últimos 12 anos eles foram saindo progressivamente da pauta”, afirma.
Um movimento conservador, principalmente em governos municipais e estaduais, estaria contribuindo para isso, com a retirada de iniciativas de educação e prevenção da rede pública, segundo o sanitarista Caio Oliveira, da Unicef.
“Tivemos a descontinuidade do programa Saúde e Prevenção das Escolas em 2010. E nos últimos 3 anos, diversas Assembleias Legislativas de capitais e municípios tiraram dos currículos escolares esse conteúdo por força de lei”, afirma.
“Salvador e Campinas, por exemplo, fizeram isso no ano passado. Como é que você não fala sobre prevenção e sexualidade na escola para os adolescentes, que são a população mais afetada?”
Para a diretora da Unaids, o movimento conservador vai além da orientação de governos federais específicos.
“Fizemos grandes projetos nos governos FHC, Lula e Dilma. Também fizemos parcerias com o governo Temer, promovendo educação sexual para usuários do aplicativo Hornet. Mas a educação é muito decidida localmente, e existe essa pressão conservadora”, afirma.
“E o impacto não é só para HIV, é para toda a saúde sexual e reprodutiva. Vemos o aumento da sífilis congênita, o aumento do número de adolescentes grávidas.”
Os três especialistas afirmam que, para além da educação sexual, os estudos de gênero e os direitos das populações LGBT precisam fazer parte das iniciativas de educação.
“Essas populações são mais vulneráveis não só pelo sexo anal aumentar a probabilidade de transmissão do vírus. Como sofrem estigma, preconceito e discriminação muito fortes, não acessam os serviços de saúde”, afirma o oficial da Unicef.
“Se um adolescente de 16, 17 anos sofre pressão da família, às vezes é expulso de casa, sai da escola por bullying homofóbico, têm poucas oportunidades no mercado de trabalho e ainda é negro e pobre, ele não vai a um posto de saúde fazer teste caso se exponha ao vírus.”
Preservativo e campanhas
Para Georgiana Braga-Orillard, o crescimento da epidemia de HIV entre os jovens – e também o resurgimento da sífilis no Brasil – indica que o preservativo está sendo pouco usado nas relações.
Isso indica, diz ela, que as mensagens de conscientização e a disponibilidade da camisinha podem não estar sendo suficientes, especialmente para os grupos de risco.
“O Brasil é o país que mais compra e distribui preservativos do mundo. Mas os projetos e campanhas para chegar as populações vulneráveis com mensagens específicas têm que ser feitos e têm que aumentar”, afirma.
No site do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, a última campanha voltada a populações trans data de 2012, com o slogan: “Sou travesti, tenho direito de ser quem sou”.
A última voltada para profissionais do sexo data de 2013, com o slogan: “Prostituta que se cuida sempre usa camisinha”.
“Já há campanhas e distribuição de preservativos em outras festas além do Carnaval, e isso é muito bom”, diz Georgiana Braga-Orillard.
“Mas o preservativo tem que estar na rua, sem juízo de valor. É preciso fazer parcerias com o setor privado. Aqui ao lado, em Buenos Aires, se encontra preservativo em todos os banheiros. No Brasil é mais fácil achar fio dental nos banheiros de bares e restaurantes do que preservativo.”
O Ministério da Saúde diz que vem concentrando esforços no que chama de “prevenção combinada, um cardápio de alternativas que vão muito além do uso do preservativo masculino (e feminino)”.
Entre elas, estão o oferecimento da chamada a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), uma terapia que dura 28 dias após a exposição da pessoa ao vírus, para tentar evitar sua multiplicação no organismo – e, com isso, a infecção.
A pasta diz ainda que um tratamento pré-exposição ao vírus está em fase final de estudos, e deve ser incorporado às opções.
uol