Data e motivo da internação: 10/11/1933, homicídio
Resumo: No dia 31 de julho do presente ano, cerca das onze horas, o denunciado Olavo*, surpreendendo premeditadamente, de tocaia, e fazendo uso de espingarda de fogo, alvejou Antonio da Silva pelas costas, um tiro que resultou em lesão corporal descrita na autopsia. O ferimento foi a causa da morte de Antonio. Com esse procedimento, plenamente confessado pelo denunciado, desvendou-se ainda que Olavo, sob promessa de casamento, deflorou a menor Rafaela, tendo com a menor, por diversas vezes, a cópula carnal. A investigação apontou que o motivo do referido assassinato foi o de Olavo procurar eliminar a vida do pai de Rafaela, o senhor Antonio da Silva, o qual ameaçava a separação de sua filha com o denunciado, impedindo os amores de ambos
*Os nomes de todos os adolescentes foram modificados nessa reportagem para proteger suas identidades.
Os documentos oficiais não relatam qual foi o desfecho para o trágico caso de amor entre os adolescentes Olavo e Rafaela. Eles voltaram a se ver? Ela o perdoou pelo assassinato do pai? Ou abandonou a promessa de casamento para sempre? Sabe-se apenas que Olavo ficou preso até 16 de maio de 1938, quando a Justiça o liberou por bom comportamento. Quando saiu, já maior de idade, tinha aprendido um ofício: auxiliar de roupeiro. De Rafaela não se tem mais notícias.
Entre 1925 e 1935, Olavo foi o único adolescente preso por homicídio no Estado de São Paulo, segundo os prontuários arquivados no Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Casa, instituição para onde são enviados menores infratores atualmente.
Nesses dez anos, apenas 380 crianças ou adolescentes passaram pelo Instituto Disciplinar e Colônia Correcional de São Paulo, um dos embriões das entidades que trabalham com adolescentes envolvidos com o crime. Na verdade, eram raríssimas as infrações praticadas por menores de idade, segundo os prontuários aos quais a BBC News Brasil teve acesso. Quando aconteciam, não passavam de pequenos furtos nas ruas. Entre os casos mais graves, além do homicídio praticado por Olavo, aparece apenas um episódio de estupro.
Em 1927, o Brasil criou seu Código de Menores, a primeira legislação específica para crianças e adolescentes.
Embora sem lei específica para menores, o Código do Processo Criminal de 1830, o primeiro conjunto de leis criminais do Brasil, previa que crianças de sete a 14 anos não poderiam responder criminalmente – depois dos 14, a punição era a mesma dos adultos. Porém, cabia a um juiz decidir se a criança menor de 14 anos tinha “discernimento” no momento da infração – se o magistrado julgasse que ela “sabia o que estava fazendo”, poderia puní-la como a um maior de idade.
Depois da Lei Áurea, em 1888, autoridades começaram a se preocupar com o aumento do número de crianças nas ruas.
“Com o fim da escravidão, as crianças negras e muito pobres começaram a ocupar as ruas, a pedir dinheiro e a praticar pequenos furtos de comida”, explica Ana Cristina do Canto Lopes, doutora em história da educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). “As autoridades, empresários e a população se incomodaram com isso. ‘O que vamos fazer com eles? Eles vão estudar nas mesmas escolas que nossos filhos?'”.
Crianças pobres tuteladas por famílias ricas
Data de entrada: 10/05/1940
Resumo: Hei as menores Maria, Lúcia e Cristina, 14, 12 e 9 anos, respectivamente, em situação de abandono no conceito legal, visto que sua mãe – Maria Xavier –, sem recursos para manutenção e educação das filhas, determina que as mesmas, em caráter definitivo até os 18 anos, continuem amparadas por esse juízo.
Data da devolução de Cristina: 22-12-1941
Resumo: Temos a honra de informar à vossa Excelência que, na presente data, a menor Cristina, de 11 anos, foi devolvida a esta diretoria pela senhora Marianita Pinto Nazario, visto que a menor se achava doente.
Em seu mestrado, a historiadora Ana Cristina do Canto Lopes procurou processos no arquivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) que tratavm da vida de menores infratores ou abandonados no final do século 19 e início do 20. Nessa época, a Justiça criou o dispositivo da tutela: juízes podiam autorizar famílias ricas a levar crianças órfãs e pobres para suas casas – elas eram usadas como mão de obra.
“O fato de ser pobre já significava ser órfão. Ou seja, se a criança vivesse em uma situação muito precária, ela podia ser retirada da família e classificada como abandonada. A ideia era tirá-las de circulação”, diz Lopes.
“Não consegui provar, mas os documentos antigos sugerem que havia uma espécie de rede de observadores que escolhiam crianças a serem retiradas das famílias. O Judiciário então fazia o trâmite para que fazendeiros ou donas de casa tutelassem essas crianças como mão de obra. Os meninos normalmente trabalhavam na agricultura; as meninas viravam domésticas”, conta Lopes.
Na época, o trabalho infantil ainda era permitido no país.
Como contrapartida, os “curadores” precisavam apenas prover a alimentação, saúde e vestuário para as crianças, além de depositar um valor mensal no chamado “cofre dos órfãos”, dinheiro que depois podia ser retirado quando o indivíduo completasse a maioridade.
No entanto, há inúmeros relatos de que famílias deixavam de depositar o valor e depois devolviam as crianças, alegando que elas estavam doentes ou tinham “mau comportamento”.
A tutela de crianças e adolescentes pobres por famílias mais ricas se prolongou por décadas. “Por muito tempo, a sociedade pensou que a solução para o problema era colocar as crianças para trabalhar. A educação viria pelo trabalho e não pela escola”, diz Lopes.
A tutela gerou problemas mais graves, como estupros de meninas por seus curadores mais velhos. Um desses casos ocorreu com adolescente Fátima, que denunciou ter sido estuprada por seu tutor no interior de São Paulo.
Outro homem, que tutelou uma menina de 12 anos em 1895, recusou-se a devolvê-la à Justiça depois que a esposa dele morreu. Ele argumentava que só poderia liberar a adolescente se conseguisse se casar de novo – o empresário já havia sido denunciado por estuprar outra adolescente anos antes, mas nunca foi condenado.
O código de menores de 1927
Data e causa da internação: 16/03/1934, abandono
Resumo: João, de 10 anos, é uma criança de índole rebelde e indisciplinada, quer na companhia de sua mãe, em São Paulo, como na de sua avó, em Mogi Mirim. Muito criança ainda, tem já uma decidida propensão para a vida nas ruas, de onde volta para
casa muitas vezes de madrugada. Urge, por consequência, preservá-lo da trilha errada. Nem que, para isso, mister se faça cercear-lhe a liberdade. De tal sorte, teremos evitado a perdição dessa criança, que a se deixar no caminho que vai, certo virá a se tornar mais um elemento inútil e nocivo à sociedade.
Em 1902, uma rica família paulistana cedeu ao município de São Paulo uma chácara com 20 mil metros quadrados, na zona leste da cidade. No local foi construído o Instituto Disciplinar e Colônia Correcional, a primeira instituição de internação de crianças e adolescentes no Estado e uma das pioneiras do país. Essa entidade, que depois sofreu uma série de mudanças de nomes e de foco de trabalho, viria a se tornar a Fundação Casa.
Duas décadas depois, em 1927, o Brasil aprovou seu Código de Menores, primeira lei específica para a faixa etária e que valeu por mais de 50 anos. Ela estabeleceu a maioridade penal aos 18 anos e acabou com o conceito de “discernimento”. De acordo com a lei, era impossível saber se uma criança tem pleno conhecimento do que está fazendo, porque essa consciência pode ser distorcida pelo contexto social.
Teoricamente, a nova legislação também abolia a ideia de punição ao jovem infrator, que vinha do Império. No lugar, a Justiça deveria ser “pedagógica, tutelar, recuperadora.”
“O horizonte dessa lei era o medo da delinquência precoce. Ou seja, a ideia era que se a criança abandonada não recebesse assistência da sociedade poderia virar um criminoso”, explica Marcos César Alvarez, professor de sociologia da USP e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV). Seu mestrado foi sobre o código de 1927.
Também pesquisador do NEV, Fernando Salla afirma que a lei foi um “divisor de águas” no tratamento criminal de adolescentes. “O código vetou a mistura de menores com adultos em prisões, por exemplo, o que ocorria muito antes. Em parte, era uma novidade, pois o Judiciário percebeu o quanto isso poderia ser danoso para a criança”, diz.
Nas décadas seguintes, surgiram entidades filantrópicas e assistenciais voltadas à infância. A Liga das Senhoras Católicas, por exemplo, recebia verbas públicas para ensinar trabalhos domésticos a meninas abandonadas. Depois, elas eram enviadas a casas de famílias ricas.
No ano de 1943, segundo Fernando Salla, o conceito de “periculosidade” ganhou importância nesse cenário. “Os adolescentes passam a ser analisados psicologicamente para determinar se eles têm ou não a tendência de praticar outros crimes. É uma questão polêmica, por que como você chega a resposta certeira sobre isso?”, diz o pesquisador.
O Código de 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente
Data e motivo da internação: 17/12/1933, furto
Resumo: Temos o prazer de informar à Vossa Senhoria que Bernardo, negro, condenado por furto, fará 18 anos em 17 de dezembro de 1936 e completará seu período de internação. Depois de três anos internado, esse educando tornou-se bem desenvolvido, alfabetizado e deseja trabalhar como cozinheiro, profissão que aprendeu nesse estabelecimento.
Com a urbanização e com o aumento da criminalidade, a legislação para adolescentes ficou mais rígida com a implantação de um novo conjunto de normas, o Código de Menores de 1979.
Especialistas dizem que a lei mantinha os princípios do modelo anterior e reforçava a chamada “doutrina da situação irregular”. Ou seja, o Estado acreditava que o menor de idade não tinha direitos nem deveria ser protegido: na verdade, a ideia era de que indíviduos infratores deveriam ser segregados e afastados do convívio social como uma forma de proteger a sociedade.
Durante a ditadura militar houve uma série de denúncias de maus tratos e torturas em instituições disciplinares para jovens, como a Fundação Estadual Para o Bem-Estar do Menor de São Paulo (Febem).
Após o fim do regime militar, grupos de defesa dos direitos humanos pressionaram o governo a adaptar a legislação brasileira às normas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos da Criança, lançada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1959.
Inspirado nesse documento, o artigo 227 da Constituição de 1988 garante “prioridade absoluta” para as crianças do país. Também determina que medidas privativas de liberdade para menores de 18 anos devem ser breves e excepcionais em caso de infrações.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi aprovado dois anos depois. “O ECA rompe com a ideia de que a criança deve ser tutelada pelo Estado, mas que ela deve ser um sujeito de direitos, protegida com políticas públicas”, explica Mariana Chies Santos, coordenadora de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
“O estatuto também separou as crianças e adolescentes em situação de risco dos infratores. Antes dele, quem vivia na rua, cheirava cola, praticava pequenos futos ou matava era a mesma coisa para o Estado e ia para o mesmo lugar”, afirma.
Depois do estatuto, que criou as chamadas medidas socioeducativas para infratores, as casas correcionais passaram a receber apenas jovens que praticaram algum crime – os abandonados ou em situação de risco passaram a ser atendidos por outros serviços.
E agora, como está?
A discussão da redução da maioridade penal renasceu nos últimos anos, principalmente depois de crimes graves cometidos por adolescentes ganharem repercussão na imprensa.
Um deles ocorreu no dia 9 em abril de 2013. Naquela noite, o estudante universitário Victor Hugo Deppman, de 19 anos, chegava em casa na zona leste de São Paulo. Foi assassinado por um adolescente que roubou seu celular. Faltavam três dias para o infrator completar 18 anos, idade que permitiria julgá-lo como adulto.
Data e motivo da internação: 16/11/1936, abandono
Relatório disciplinar:
25/1/1937 – José foi transferido para o setor de pedreiros. Teve ótimo comportamento, mas o aproveitamento foi nulo
22/2/1937 – Saiu a passeio
29/3/1937 – Proibido de ir ao cinema porque perdeu sua escova de dentes
12/8/1937 – Está matriculado no 1º ano escolar. Este menor tem ótimo comportamento em todas as seções, porém, sem aproveitamento. Esta administração considera não ser conveniente conceder-lhe a liberdade, pois é mister que José não tem qualquer aptidão.
Em 2016, a Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reduz a maioridade penal para 16 anos em caso de crimes graves, como homicídio e estupro. Mas o projeto ainda não avançou no Senado.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) já se posicionou a favor da redução. Ele também chegou a dizer durante a campanha que o levou à Presidência que o “ECA deveria ser rasgado e jogado na latrina.”
Quem defende a diminuição argumenta que os adolescentes infratores já têm consciência de seus atos, recebem punições brandas e saem das instituições sem antecedentes criminais. A suposta impunidade faria com que o crime organizado recrutasse jovens para praticar crimes que custariam muitos anos de cadeia para adultos.
Quem é contra diz que um menor de 18 anos ainda está em formação e que antecedentes criminais manchariam sua vida em um país que costuma dar poucas oportunidade para ex-presidiários. O encarceramento não diminuiria a violência, dizem. Pelo contrário, a tendência seria aumentá-la, pois os jovens presos poderiam se transformar em mão de obra para as facções criminosas que dominam as cadeias.
Segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), o Brasil tinha 26 mil adolescentes cumprindo medidas em regime fechado ou semiliberdade em 2016 – em comparação, no mesmo ano, o sistema carcerário tinha 726 mil adultos presos.
Os crimes mais graves são minoria entre os adolescentes presos. Se a redução passar a valer, milhares de jovens não violentos seriam deslocados para presídios de adultos, dizem os críticos da redução.
Segundo o Sinase, os homicídios representam 10% das infrações; latrocínios, 2% e estupros, 1%. Já roubos e furtos são 50% do total, e tráfico de drogas, 22%.
“Muitos adolescentes não têm perfil violento, mas eles veem no tráfico uma perspectiva de conseguir dinheiro de uma maneira mais fácil”, diz Tatiana Callé Heilman, promotora da infância em São Paulo. “As facções conseguem oferecer uma condição financeira muito melhor do que a família desses jovens. Eles ganham mais do que os próprios pais.”
Diariamente, a promotora participa de dezenas de audiências com adolescentes infratores em um Fórum na região central da capital paulista.
“O perfil que aparece para o Judiciário é do jovem de classe baixa, da periferia, que está fora do ambiente escolar. A gente sabe que existem adolescentes de classes mais altas trabalhando para o tráfico de drogas, mas eles normalmente não são alvo da polícia porque não vendem nas ruas”, diz.
R7