O governo anunciou na semana passada, em decisão que surpreendeu o mercado, a privatização da Eletrobras, uma gigante formada por centenas de empresas que atuam em todas as três fases da cadeia produtiva do setor.
São 233 usinas de geração de energia, incluindo Furnas – que opera 12 hidrelétricas e duas termelétricas – e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), além de seis distribuidoras, todas na região Norte e Nordeste, e 61 mil quilômetros de linhas de transmissão, metade do total do país e o suficiente para dar uma volta e meia no planeta.
Privatizar a companhia, dizem especialistas consultados pela BBC Brasil, pode ser um passo importante para que ela ganhe eficiência. A Eletrobras registrou prejuízos reiterados entre 2012 e 2015 e hoje tem uma dívida de quase R$ 40 bilhões. A situação financeira de algumas das empresas, especialmente das distribuidoras, é bastante frágil, afirmam economistas e engenheiros.
Além disso, eles acrescentam, seria um caminho para que a estatal deixasse de ser usada como instrumento do “toma lá dá cá” político. Hoje, de forma geral, são os partidos à frente do Ministério de Minas e Energia que nomeiam os cargos mais altos das principais empresas.
Por outro lado, a desestatização poderia ser melhor discutida, construída de forma mais estratégica. No contexto em que foi anunciada, dentro de um pacote que contabiliza 57 privatizações, a motivação do governo parece ser o rombo nas contas, ponderam alguns especialistas. O potencial de arrecadação apenas da estatal de energia é de R$ 20 bilhões, conforme as estimativas do Ministério da Fazenda.
“O governo está querendo vender a Eletrobras para tapar um buraco conjuntural”, afirma Nivalde de Castro, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ).
Para ele, que é coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) do IE-UFRJ, a estatal não precisaria ser privatizada para ter uma gestão profissional, mais eficiente e para se desvencilhar do “sequestro político”.
O economista cita como exemplo nesse sentido o caso da Petrobras, que, hoje sob nova direção, vem conseguindo reduzir seu nível de endividamento e apresentar resultados cada vez melhores.
Já Dorel Soares Ramos, professor do Departamento de Energia Elétrica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), avalia que, “se bem feita”, a privatização seria “virtuosa”. “Mas ela poderia ter sido mais bem pensada. O motivo principal parece ser cobrir o déficit público”, ressalva.
Concentrar ou dividir
Um indício nesse sentido seria o próprio modelo escolhido pelo governo, relativamente simples, que prevê a desestatização de toda a holding através de novas emissões de ações. “Isso mostra que ele tem pressa”.
Em sua avaliação, o ideal seria privatizar a Eletrobras por partes, à semelhança do que foi feito com a Companhia Energética de São Paulo (CESP) em meados dos anos 1990 pelo então governador Mário Covas (PSDB) – processo que Ramos acompanhou de perto, já que trabalhou na empresa por 18 anos. “Em alguns casos, faria sentido inclusive você fatiar a empresa, como no caso de Furnas, que é muito grande.”
Hoje, o governo federal detém 60% das ações da estatal. A União é dona de 41% e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), junto com seu braço de participações, o BNDESPar, de outros 19%.
O plano inicial, conforme a divulgação feita na quarta-feira, é diminuir essa participação emitindo novas ações. Com um volume maior de papéis, a fatia do setor público seria diluída e a companhia, capitalizada.
De um lado, segundo o governo, o modelo procuraria evitar que o controle da companhia ficasse nas mãos de apenas um grupo, mas esse é um risco que ainda não pode ser descartado, avalia o especialista.
Os principais interessados no negócio – as empresas europeias e chinesas do setor -, dificilmente aceitariam compartilhar a gestão.
“Os chineses não gostam de nada pulverizado”, acrescenta João Carlos Mello, presidente da Thymos, consultoria que atua no setor, referindo-se ao caso recente da CPFL Energia.
No segundo semestre de 2016, a chinesa State Grid, maior empresa do setor elétrico do mundo, comprou a fatia de 23% que a Camargo Correa detinha na companhia.
Nos meses que se seguiram, a estatal chinesa foi adquirindo participações de minoritários até que, em janeiro deste ano, tornou-se sua controladora.
Ter 30% de todo o potencial de geração de energia elétrica do país, como é o caso da Eletrobras, em poucas mãos poderia fazer com que o grupo controlador, diz Ramos, da USP, se tornasse um “price maker”, ou seja, que passasse a influenciar nos preços da energia.
Desinvestimento
Em paralelo ao processo de privatização, a Eletrobras também deve ficar menor. Sob a gestão do atual presidente, Wilson Ferreira Júnior – que, na opinião dos especialistas, tem feito bom trabalho na tentativa de reequilibrar a empresa financeiramente -, o grupo já vinha se preparando para se desfazer de alguns de seus negócios.
Cristopher Vlavianos, presidente da Comerc, maior gestora de energia do país, lembra da venda, em novembro do ano passado, da Celg-D, distribuidora de energia de Goiás, e do anúncio, feito há dois meses, da intenção de vender as outras seis distribuidoras até o fim de 2017.
Também está em curso um programa de demissão voluntária que deve enxugar quase metade do quadro de funcionários, dos atuais 23 mil, para algo em torno de 12 mil.
Ficarão de fora da privatização, ainda, as usinas nucleares de Angra, já que a Constituição prevê que apenas o Estado seja seu controlador, e Itaipu, que também pertence ao Paraguai.
Energia mais cara?
Dorel Ramos, da USP, e Nivalde de Castro, da UFRJ, avaliam que a conta de luz vai ficar mais cara após a desestatização. A razão principal é a mudança prevista para o regime de comercialização da energia produzida pelas usinas da Eletrobras, a chamada “descotização”.
Desde 2012, quando foi instituída a Medida Provisória 579, as usinas vendem às distribuidoras energia abaixo do preço de mercado, através de cotas. Atualmente, 14 hidrelétricas da Eletrobras estariam aptas à mudança, que elevaria os preços dos contratos às médias praticadas no mercado.
A “descotização”, discutida ainda antes da desestatização, por meio de uma consulta que o Ministério de Minas e Energia lançou em julho para debater mudanças no marco regulatório do setor, prevê o pagamento de um bônus à União – os R$ 20 bilhões que o governo espera arrecadar com a privatização e que seriam pagos com a emissão de ações da companhia.
Pela proposta que foi para consulta pública, um terço do bônus ficaria com as geradoras, um terço seria usado para abater encargos setoriais – uma conta paga pelos consumidores e que se destina, em parte, para reduzir os prejuízos acumulados com a MP 579 – e um terço iria para o Tesouro.
Vlavianos, da Comerc, pondera que é “difícil” afirmar se os preços devem aumentar ou cair para o consumidor final. O uso de parte do bônus para abater os encargos setoriais, ele exemplifica, poderia significar tarifas menores no futuro, ao lado dos ganhos de eficiência de uma gestão mais profissional da companhia.
O governo já sinalizou, entretanto, que pode ficar com a fatia que seria direcionada para a conta de encargos, ressalta Ramos, para ajudar a conter o deficit fiscal.
“E os ganhos de eficiência vão virar dividendos para os acionistas, não preços menores para os consumidores”, acrescenta Castro.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estima que a “descotização” pode gerar aumento de até 16,7% nas contas de luz.
Pacote de privatização
O anúncio dos planos de privatização da Eletrobras e da Casa da Moeda foram basicamente as únicas surpresas do pacote anunciado pelo governo na quarta-feira passada, diz o economista-chefe da 4E Consultores Juan Jensen.
“Entre os aeroportos, portos, trechos de rodovia e a Lotex, muita coisa já tinha sido anunciada ou vinha sendo discutida”, explica.
Os 57 projetos fazem parte do Programa de Parceria de Investimentos (PPI) e se somam aos outros 34 anunciados em setembro do ano passado, entre empresas de saneamento estaduais e rodovias.
“A agenda é boa, mas dificilmente sai metade do que foi anunciado”, pondera o economista, que considera o anúncio uma “carta de intenções” e uma tentativa do governo de “mostrar que tem um pensamento pró-mercado”.
Boa parte do que foi divulgado, mesmo que seguisse o cronograma inicialmente previsto, só seria licitado no fim do próximo ano. Levando-se em conta os atrasos – e as privatizações anunciadas em 2016 são um precedente nesse sentido, já que têm caminhado em velocidade mais lenta que o previsto -, boa parte deve ficar para o próximo governo, avalia o economista.
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