A semana que passou foi de más notícias para a chamada “ala ideológica” do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Oficializada na chefia da Secretaria de Cultura, a atriz Regina Duarte destituiu ao menos seis pessoas do comando da pasta — alguns dos demitidos se identificavam como “bolsonaristas” ou eram alunos de Olavo de Carvalho.
Na quarta-feira (4), Duarte demitiu do comando da Fundação Nacional de Artes (Funarte) o maestro Dante Mantovani — ele ficou no cargo por apenas 90 dias. O musicista seguia as ideias de Olavo de Carvalho e ficou conhecido ao associar o rock ao satanismo, em vídeos publicados nas suas redes sociais.
As demissões na Secretaria de Cultura, no entanto, são apenas a última gota d’água numa sequência de acontecimentos. Desde o começo do ano, a ala do governo que segue as ideias do filósofo radicado no Estado americano da Virgínia vem perdendo força dentro da administração.
Além da Secretaria de Cultura, é o aumento no protagonismo dos militares que está retirando espaço dos “olavistas” do governo — tanto no núcleo do Palácio do Planalto quanto nas relações exteriores.
No começo de fevereiro, o ministro Onyx Lorenzoni deixou a Casa Civil em favor de outro militar, o general de Exército Walter Souza Braga Netto. Foi a primeira vez que um militar assumiu o posto, cujo titular despacha dentro do Palácio do Planalto, desde o governo do general Ernesto Geisel (1974-79). Onyx agora comanda o Ministério da Cidadania.
Embora não seja considerado “olavista”, Lorenzoni se encontrou com o filósofo no fim de janeiro, em uma viagem aos EUA — um vídeo da visita foi postado nas redes sociais pelo “filho 02” do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Antes de se tornar ministro, Lorenzoni integrava a ala mais à direita de seu partido, o DEM.
O mês de fevereiro também trouxe um revés para a ala olavista no 3º andar do Palácio do Planalto. É neste pavimento que fica o gabinete de Jair Bolsonaro, e também a sala de Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais — e também aluno de Olavo de Carvalho.
Nos primeiros meses do governo, Martins gozou da proximidade do presidente, e até entrou em atrito com os militares. Mas, em meados de fevereiro, um despacho no Diário Oficial colocou o aluno de Olavo sob a tutela de um militar — o almirante Flávio Augusto Viana Rocha. O militar da Marinha responde diretamente a Bolsonaro, e é a ele que Filipe Martins passou a se reportar, embora tenha mantido sua sala no Planalto.
Do outro lado do Eixo Monumental, no Itamaraty, o chanceler Ernesto Araújo tem evitado dar declarações públicas: a última entrevista dele a um jornal brasileiro foi concedida à paranaense Gazeta do Povo, no começo de dezembro. De lá para cá, o ministro só conversou com veículos estrangeiros, e as entrevistas tiveram pouca repercussão no Brasil.
A exceção foi uma conversa com o portal Brasil sem Medo, um veículo de comunicação lançado por Olavo de Carvalho.
No começo da gestão Bolsonaro, Ernesto Araújo se envolveu em várias polêmicas — uma delas ao dizer que tanto o nazismo quanto o fascismo eram regimes totalitários de esquerda. A ideia é amplamente contestada, inclusive pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém.
Além disso, Araújo vem adotando um tom mais sóbrio e pragmático em ocasiões públicas — a última delas foi a visita do chanceler argentino Felipe Solá a Brasília, em 12 de fevereiro. O ministro estrangeiro integra um governo de esquerda, comandado pelo presidente Alberto Fernández e pela vice, Christina Kirchner. Mesmo assim, Araújo focou sua intervenção na importância da colaboração entre os dois países.
Para um observador da cena política em Brasília, a recente moderação de Araújo pode ser resultado de uma influência maior dos militares nos rumos da política externa — papel que eles exercem desde a época do governo de transição, no fim de 2018, diz o profissional.
“Pelo menos durante a campanha, o general (Augusto) Heleno, hoje no GSI, trocava zaps e e-mails com o embaixador Rubens Barbosa (ex-representante do Brasil nos EUA), e advertia Bolsonaro sobre maluquices como levar a embaixada brasileira (em Israel) para Jerusalém; sobre afrontar desnecessariamente a China, tá certo? Então é uma postura (a defendida pelos militares) mais de acordo com a linha tradicional do Itamaraty”, diz.
‘Fomos demitidos por sermos de direita’
Na manhã desta quarta-feira (04), o Diário Oficial trouxe as demissões de cinco dirigentes da pasta da Cultura. As demissões ocorreram a mando da atriz Regina Duarte, que tomou posse como titular da pasta no mesmo dia.
Foram demitidos os dirigentes Camilo Calandrelli, ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura; Ricardo Freire Vasconcellos, ex-diretor do Sistema Nacional de Cultura; Reynaldo Campanatti, ex-secretário de Economia Criativa; e Ednagela Santos, diretora do Departamento de Cultura.
Além disso, também foram limadas as chefes de gabinete de Camilo e a de Reynaldo.
Pouco depois de aceitar o convite de Bolsonaro para chefiar a Cultura, Regina Duarte também mandou embora a secretária interina da Cultura, a pastora evangélica Jane Silva.
Ela chegou a ser cotada para permanecer como a número dois de Regina na pasta, mas acabou demitida depois de desentender-se com o produtor cultural Humberto Braga — um produtor cultural com trânsito nos meios de esquerda, e que será o adjunto da atriz na Secretaria de Cultura.
Para Jane Silva, foi o alinhamento ideológico com a direita que fez com que ela e os demais fossem demitidos da secretaria.
“O único problema meu, e de nós todos que fomos exonerados, é que nós somos de direita. Se não fôssemos, estaríamos lá até hoje”, diz.
Tanto Mantovani quanto os outros exonerados chegaram ao governo durante a gestão do dramaturgo, e seguidor de Olavo de Carvalho, Roberto Alvim. Este acabou demitido em janeiro, depois de postar um vídeo no qual faz uma alusão a um discurso do ideólogo nazista Joseph Goebbels (1897-1945).
Nos últimos dias, Olavo de Carvalho tem usado sua conta no Facebook para reclamar da nomeação de Regina Duarte. A atriz, escreveu Olavo na noite desta quinta-feira (5), “não tem a menor ideia do que está fazendo”. “Peço ao presidente da República que me perdoe por ter endossado o nome dessa senhora para um cargo que está infinitamente acima da capacidade dela”, escreveu.
“Agora está muito claro (o motivo da demissão). A maioria ali, a Regina não viu nem a cara deles. Ela conhecia o Camilo de conversar durante poucos minutos”, diz Jane Silva.
“Nunca viu o Dante (Mantovani, exonerado da Funarte), nunca viu a Ednagela. Nunca chamou para conversar essas pessoas que ela exonerou”, diz a ex-secretária. Hoje, Jane trabalha como assessora da deputada federal Alê Silva (PSL-MG), na Câmara.
“São pessoas da mais alta competência. A Ednagela é doutora em Orçamento, pediu exoneração de um gabinete na Câmara para vir trabalhar comigo”, argumenta ela.
Ao assumir o cargo, Regina Duarte também teria tido a intenção de demitir o presidente da Fundação Palmares, o jornalista Sérgio Camargo, segundo Jane Silva — a Palmares é subordinada à Secretaria de Cultura, e Camargo teria irritado Regina Duarte ao demitir os antigos dirigentes da Fundação sem avisá-la.
Nesta semana, porém, Camargo posou para uma foto com Jair Bolsonaro na conta do presidente no Twitter. O próprio jornalista escreveu depois que está “confirmadíssimo” no cargo, “com respaldo do presidente e do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio”.
‘Mais rearranjo do que derrocada’, diz analista
Para o cientista político Cláudio Couto, a principal tendência em curso é um aumento do poder da ala militar do governo; mais até do que a decadência da “ala ideológica”.
“Se a gente for contabilizar em termos de cargos, é possível que tenham (os olavistas) perdido espaço. Mas, na verdade, o que se vê é um crescimento impressionante dos militares. A gente sempre lembra dos ministros, mas o verdadeiro aumento (no número de militares) se deu (em cargos comissionados) nos escalões mais baixos”, diz ele. No fim de 2019, eram cerca de 1,2 mil militares cedidos para diversos órgãos do governo.
“Mesmo assim, os olavistas permanecem em áreas estratégicas. O Ernesto Araújo permanece no MRE, assim como o Abraham Weintraub segue como ministro da Educação. E tem os próprios filhos (de Bolsonaro), que são como ‘ministros sem pasta’ do governo”, argumenta Couto, que é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da FGV.
Para o cientista político Rafael Cortez, as mudanças em curso representam mais um rearranjo entre as diferentes alas governistas do que propriamente a derrocada do olavismo.
“É mais um rearranjo, informado pela necessidade que existe hoje de mostrar força política em um cenário de turbulência econômica e de tensão entre os poderes. O momento de maior protagonismo tem a ver com essa necessidade de reforçar a legitimidade do mandato do presidente”, argumenta ele, que é sócio da Tendências Consultoria.
“Esta dimensão da guerra cultural, da agenda de valores, ela é formadora do que é o bolsonarismo. Foi uma das variáveis mais importantes para a vitória dele em 2018, ao ajudar na construção da imagem de outsider, de figura que mais se distanciava do PT. E por isso me parece que, a despeito da eventual troca de nomes, essa ala ‘ideológica’ vai permanecer como uma marca da gestão”, diz ele.
R7