Com a queda de doações, sem o auxílio emergencial desde dezembro e com moradores sem poder trabalhar por causa das restrições, o agravamento da pandemia de covid-19 trouxe um risco real de convulsão social às comunidades do país. A avaliação é de Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva e do Data Favela.
Desde março do ano passado, o instituto já realizou quase 50 pesquisas para medir os impactos da crise sanitária entre as 13,6 milhões de pessoas que moram em favelas no Brasil, a parcela da população mais vulnerável, com o aumento da fome e do desemprego.
No último levantamento, em parceria com a Cufa (Central Única das Favelas), realizado em fevereiro, 68% dos moradores não tinham dinheiro para comprar comida e o número de refeições diárias caiu de uma média de 2,4, em agosto de 2020, para 1,9, em fevereiro deste ano.
Além da fome, a pesquisa mostrou que as pessoas das comunidades têm enfrentado ainda um risco sanitário maior por ter que se expor ao vírus para conseguir sustento: 32% estavam procurando seguir as medidas de prevenção contra a covid-19, enquanto 33% procuravam seguir, mas nem sempre conseguiam; 30% não conseguiam seguir; e 5% não estavam tentando seguir.
Para Meirelles, os dados atuais são mais preocupantes do que os do início da pandemia. “As pessoas estão sem alternativa para conseguir fazer com que não morram de fome”, afirma. Ele considera que um dos legados da crise será o entendimento da desigualdade social do Brasil, que ganhou ares trágicos com a pandemia.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
Como você avalia o impacto dessa segunda onda de covid-19 nas comunidades?
Nós estamos vendo o crescimento do número de pessoas contaminadas, de mortes e de lotação das UTIs. Junto com essa triste realidade, as pessoas estão sem alternativa para conseguir fazer com que não morram de fome. Obvialmente, que essa alternativa não é de colocar a saúde em risco, mas seria o auxílio emergencial e o aumento de doações. Mas o fato é que hoje nós estamos à beira do limite. As favelas correm um risco real de convulsão social.
Quais seriam as consequências?
Qualquer pai ou mãe de família sabe que seria capaz de fazer absolutamente qualquer coisa para garantir com que não falte comida no prato do seu filho. A gente já diagnosticou no início da pandemia, antes do auxílio emergencial, o papel que as doações tiveram. Esse papel continua tendo nessa realidade das favelas hoje. Agora, se não se acelerar a retomada do auxílio emergencial, em especial para essa parcela da população, que é a mais pobre, ela vai buscar comida e, se não conseguir achar, ela não vai deixar o filho morrer de fome.
O que pode ser feito para diminuir esses efeitos na população?
Primeiro, é a volta do auxílio emergencial. Entre os moradores, 58% recebiam o auxílio e estão há três meses sem, o que está fazendo falta para comprar comida. Fora isso, ajudar a entidades, como a Central Única das Favelas, com doação de cestas básicas para essas comunidades. A terceira questão é a abertura das escolas, porque não receber as merendas está fazendo diferença no orçamento dessas família, que têm uma dificuldade maior de manter o padrão alimentar.
A partir de abril, quando começará a ser pago o novo auxílio emergencial, isso trará um alento?
O auxílio emergencial ajuda, mas é um auxílio muito menor do que era o anterior, num cenário em que a economia não voltou e não voltará a crescer sem a população estar amplamente vacinada.
Qual o legado da pandemia do novo coronavírus para as questões sociais?
Talvez a principal questão é o entendimento sobre a desigualdade no Brasil, ou seja, a desigualdade já existia, mas ganhou ares trágicos com a pandemia. Outro legado é a união das ações do terceiro setor com a iniciativa privada, para garantir que essas pessoas não tivessem morrido de fome.
Por outo lado, ficou o legado que não dá para esperar ter uma pandemia para descobrir que há 30 milhões de invisíveis. Admitir isso como foi feito no início da pandemia como foi pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, significa que não há política pública e econômica voltada para essas pessoas. Enquanto o governo procurava essas pessoas, você tinha entidades como a Central Única das Favelas, em parceria com iniciativa privada, fazendo cadastramento de mães com biometria facial.
Depois do auxílio emergencial, a ampliação do Bolsa Família pode ser uma solução?
Não tenho dúvida nenhuma que no país que disputa liderança mundial de desiqualdade e distribuição de renda é um caminho inevitável. Existe o empreendedorismo dentro da própria favela, onde as pessoas acabam gastando dinheiro dentro da comunidade, fortalecendo o comércio local, aumentando a contratação do varejo local, dando um choque de incentivo na economia na base da pirâmide. Quanto mais dinheiro vier, auxílio emergencial ou doações, mais o ciclo econômico da base da pirâmide se movimenta.
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