O Brasil deve ser atingido por uma “tempestade perfeita” nos próximos dois meses. Isso porque parte do país deve enfrentar um aumento da incidência de três doenças: a covid-19, causada pelo novo coronavírus, a gripe comum e a dengue.
A expressão, “tempestade perfeita”, foi usada na semana passada por Wanderson Oliveira, secretário nacional de Vigilância em Saúde, quando alertou, em entrevista coletiva, que “vamos ter o coronavírus, que é novo, vamos ter a influenza [gripe], que é rotina todo ano, e também vamos ter o pico da dengue… Estamos com três epidemias simultâneas”.
O aumento dessas três doenças pode impactar ainda mais o sistema de saúde brasileiro. A tendência é que subam os números de atendimentos e internações por quadros graves, pressionando os recursos do sistema de saúde pública.
Se, por um lado, as infecções por coronavírus estão aumentando — já são 240 mortes e mais de 6,8 mil casos confirmados até quarta-feira, segundo o Ministério da Saúde —, por outro, a incidência de dengue, transmitida pelo velho conhecido mosquito Aedes aegypti, também tem registrado um crescimento preocupante.
O último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde diz que o Brasil já registrou, até 21 de março deste ano, pouco mais de 441 mil casos prováveis de dengue — aqueles que são notificados à pasta pelos Estados, mas ainda precisam de confirmação por meio de resultados de exames.
Ao menos 120 pessoas morreram da doença no período — é possível que esse número de mortos seja maior, pois há dezenas de casos suspeitos que ainda necessitam de confirmação.
Isso significa uma média, no Brasil, de 209 casos prováveis de dengue por 100 mil habitantes — um crescimento de 59% em relação ao mesmo período do ano passado (a comparação entre boletins de diferentes anos, entretanto, deve ser feita com cautela, já que há muitas alterações e atualizações de números depois que eles são publicados pela primeira vez).
Segundo o Ministério da Saúde, historicamente o pico de registros de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como dengue, zika e chikungunya, ocorre nos meses de abril e maio.
Ou seja, se o cenário já parece ruim, ele tende a piorar nos próximos 60 dias, coincidindo com a provável alta de casos de covid-19 e de influenza, que também costuma crescer e causar mortes conforme a média da temperatura diminui em vários Estados.
A própria influenza costuma causar centenas de vítimas no país. No ano passado, o Brasil registrou 1.122 mortes pelos três tipos de influenza, segundo o Ministério da Saúde.
Acúmulo de doenças
Para Adriano Massuda, médico sanitarista e professor de saúde coletiva da Fundação Getúlio Vargas, o acúmulo de epidemias concomitantes é “uma situação grave, que pode produzir uma sobrecarga no sistema de saúde.”
“É um cenário que vai ficar ainda mais complexo. Apesar de alguns sintomas serem até parecidos, como dores no corpo e febre, precisa haver a linha de cuidados para pacientes respiratórios, como influenza e covid-19, e outro para a dengue, pois os tratamentos são diferentes”, afirmou à BBC News Brasil, por telefone.
“É possível até que exista uma confusão para descobrir quem está com dengue, com gripe ou covid-19. Isso pode atrapalhar ainda mais o sistema de saúde”, diz.
Massuda ressalta, no entanto, que medidas como o isolamento social — tomadas para diminuir a proliferação do coronavírus — podem ajudar a diminuir a incidência de gripe comum, que é transmitida basicamente da mesma forma: pelo contato com pessoas já infectadas.
Já André Périssé, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, acredita que as internações por covid-19 serão em maior número, pois a taxa de doentes graves diagnosticados com dengue é bem menor.
“A letalidade da dengue é parecida com a influenza sazonal (de 0,01% até 0,08% dos casos). Já a covid-19, apesar da letalidade não ser alta (de 1% a 3,5%), demanda um tratamento mais complexo, muitas vezes com internação”, diz Périssé.
“Mas não há dúvidas que acúmulo dessas doenças vai pressionar o sistema de saúde. E isso sem falarmos de outros problemas, pois o hipertenso não vai deixar ser hipertenso por causa da pandemia, o mesmo ocorre com o diabético. Por isso, nesse momento, a boa gestão da saúde e dos recursos disponíveis vai ser importantíssima”, afirma.
Dengue e coronavírus no Paraná
Nesse ano, o Paraná vem sendo o Estado do país mais afetado pela dengue, seguido por Mato Grosso do Sul e Acre. Segundo a secretaria estadual de Saúde, já são mais de 87 mil casos confirmados da doença na área.
Dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, que usa notificações (ainda à espera de exames de confirmação), a incidência da doença no Paraná chegou a 1.231 casos por 100 mil habitantes — alta de 1.737% em comparação com o mesmo período do ano passado.
Como comparação, a taxa de dengue por 100 mil habitantes no Rio de Janeiro é de 14 casos; em Pernambuco é 37; e no Acre, 465.
O governo paranaense afirma que 69 pessoas morreram de dengue no Estado desde agosto do ano passado — 12 delas apenas na última semana.
Por outro lado, o Paraná contabilizou, até essa quarta-feira, 229 casos confirmados de infecções por coronavírus, com três mortes.
Para Beto Preto, secretário estadual de Saúde, os casos de covid-19 vão crescer no Estado, pois o vírus tem transmissibilidade alta. Mas ele espera que, ao mesmo tempo, o ritmo aumento da dengue diminua na outra ponta.
“Quando a covid-19 apertar, esperamos ter menos casos de dengue, para que não haja um colapso (no sistema de saúde). Nesse ano, nós concentramos todo nosso esforço para conter a dengue, mas ela continuou crescendo. É uma lástima”, disse Beto Preto à BBC News Brasil, por telefone. “Com a temperatura baixando, esperamos que os focos de mosquitos diminuam.”
Segundo ele, o Paraná tem se preparado para o avanço da covid-19 com as contratações de novos leitos e profissionais, além de investimentos sociais para ajudar a população a manter o isolamento social.
No norte do Estado, a cidade de Londrina também tem enfrentado os dois problemas: o município já teve 26 casos confirmados de covid-19 e mais de 6,5 mil de dengue — 15 pessoas morreram da doença no município desde janeiro.
Há poucas semanas, Londrina chegou a cancelar cirurgias eletivas no SUS por 10 dias e isolar um hospital para tratar apenas pacientes com dengue — depois ele voltou ao funcionamento normal. Agora, o município planeja fechar outra unidade para o tratamento de coronavírus.
“Quando a dengue deu sinais de que estava caindo em Londrina, chegou a covid”, diz Felippe Machado, secretário municipal de Saúde.
Segundo ele, a cidade tem aumentado o número de leitos nas redes pública e privada, além de ter reservado uma verba extra para construir um hospital de campanha.
“A contenção da dengue coube no nosso orçamento de saúde. Mas, agora, precisamos de um reforço. Vamos contratar 500 novos profissionais, ao custo de R$ 2 milhões por mês”, diz Machado.
Por que a dengue tem aumentado?
Mas, além da pandemia do novo coronavírus, que tem consumido a atenção de autoridades e da população, por que a dengue, uma velha conhecida dos brasileiros, continua avançando no país?
Uma das características da doença é que ela se comporta como uma espécie de onda — cresce em alguns anos e diminui em outros.
Uma das explicações para esse comportamento é a alteração do tipo do vírus circulante entre a população. Existem 4 sorotipos do vírus da dengue, uma classificação que corresponde à resposta de diferentes anticorpos no infectado. Os sintomas da doença não se alteram.
Quando uma pessoa contrai dengue do tipo 1, por exemplo, ela fica imunizada para esse tipo específico. Porém, quando o sorotipo muda para o 2, ela volta a ficar suscetível a ser infectada.
Especialistas acreditam que, em parte, essa é uma das causas para a alta de dengue em alguns Estados nesse ano — uma mudança gradual do tipo 1 para o 2 vem ocorrendo há alguns anos.
De fato, segundo informações enviadas pelo Ministério da Saúde à BBC News Brasil, a participação do sorotipo 2 no número de casos de dengue cresceu nos últimos cinco anos no país, chegando em 2019 ao maior percentual: 65,6% dos casos, seguido pelo sorotipo 1 (30,4%) e sorotipo 4 (3,9%).
No Paraná, de 2010 ao ano passado, a grande maioria das pessoas que teve dengue foi infectada pelo tipo 1 da doença. Já a partir de agosto de 2019, o sorotipo 2 foi responsável por 87% das infecções no Estado.
Mas essa é só uma das explicações. Há também condições meteorológicas particulares nos últimos meses, queda de investimentos públicos em prevenção e no programa Saúde da Família, além de características culturais e comportamentais da população.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, Ivana Belmonte, coordenadora de vigilância ambiental da Secretaria de Saúde do Paraná, citou a falta de uma cultura de eliminação de criadouros do mosquito no país. “Esse hábito ainda é pequeno no Brasil. É preciso sensibilizar ainda mais a população de que o risco é real, de que você ou um parente pode morrer de dengue”, explica.
Para o sanitarista Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas, medidas preventivas contra o Aedes aegypti têm falhado não apenas por descuido da população, mas também do poder público.
“Nos últimos anos, temos visto cada vez a diminuição do financiamento de programas de prevenção à dengue e da Saúde da Família. Muitas vezes se investiu em projetos equivocados, que não deram em nada, como a vacinação que ocorreu no Paraná. Agora é correr atrás do prejuízo”, diz.
De fato, em 2016, o governo do Paraná gastou R$ 95 milhões para vacinar parte da população contra a dengue. Porém, a vacina não era recomendada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nem pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Para o atual secretário de Saúde do Estado, Beto Preto, o “projeto falhou”. “Inegavelmente, essa vacinação não deu certo”, diz ele, que não era o titular da pasta na ocasião.
Já André Périssé, da Fiocruz, acredita que a solução do problema da dengue passa por outras áreas para além da saúde pública.
“A dengue extrapola a área da saúde, depende de uma integração de vários setores. A solução envolve política habitacional e de desenvolvimento urbano. Costumo citar o caso da fronteira do México com os Estados Unidos. Do lado mexicano, menos desenvolvido, há muito mais casos que o lado americano, onde quase não há dengue”, explica.
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que “regularizou a distribuição dos insumos necessários para o controle do Aedes, com distribuição de inseticidas”.
Além disso, diz, a pasta “regularizou a entrega dos kits de diagnósticos para doença, estando todos os Estados abastecidos com o insumo.”
“O Ministério da Saúde também oferece, continuamente aos Estados e Municípios, apoio técnico e insumos para o combate ao vetor. Para estas ações, o Governo Federal tem garantido orçamento crescente aos estados e municípios”, diz.
R7