O governo brasileiro vai distribuir cloroquina, um fármaco hoje usado no tratamento de doenças como malária e lúpus, para que seja usado em pacientes graves com covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
O medicamento vem gerando dúvidas e suscitando debate desde que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defendeu no Twitter a liberação do remédio pelos órgãos de saúde pública para tentar conter a epidemia no país e que o presidente Jair Bolsonaro anunciou que o laboratório do Exército passaria a produzir o medicamento no Brasil.
Mas o medicamento pode ser eficaz contra a covid-19?
Médicos e especialistas consultados pela BBC News Brasil ressaltam que não existem evidências científicas de que o medicamento seja eficaz no tratamento.
Na coletiva de imprensa em que anunciou a distribuição da cloroquina para hospitais pelo país, o secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, Denizar Vianna, afirmou que pesquisas laboratoriais feitos até agora mostraram bons resultados contra o novo coronavírus.
Isso significa que o medicamento foi testado com sucesso em laboratório, em cultura de células – o primeiro degrau de um longo processo para se desenvolver um medicamento.
Longe de conclusão
Passada essa primeira fase, há pelo menos outras três: testes em camundongos, estudos em animais não roedores, como cães e macacos e, finalmente, estudos em humanos.
Os testes em humanos, por sua vez, se subdividem em outras etapas, até chegarem ao estudo clínico randomizado controlado – RCT, na sigla em inglês -, quando se sabe sobre o nível de toxicidade do remédio para o corpo, sua eventual interação com outros medicamentos, seus efeitos colaterais.
No caso do uso da cloroquina para tratar covid-19, a única sinalização positiva que se tem é o estudo em vitro, em cultura de células.
Apesar de ele já ser um medicamento comercializado no mercado, é usado no tratamento de outras doenças e, por isso, precisaria ser amplamente testado em humanos para se avaliar sua eficácia contra o novo coronavírus e seus eventuais riscos a esses pacientes.
No estudo in vitro, pesquisadores chineses avaliaram o efeito antiviral da cloroquina e da hidroxicloroquina e verificaram que os medicamentos inibiram a tanto a etapa de entrada do vírus na célula quanto estágios celulares posteriores relacionados à infecção pelo novo coronavírus.
Houve bloqueio, por exemplo do transporte do vírus entre organelas das células, os endossomos e endolisossomos, que, segundo uma nota técnica divulgada pela Anvisa, parece ser a etapa determinante para a liberação do genoma viral nas células.
Fora do ambiente laboratorial, não existe um estudo clínico que aponte que o remédio funcione de fato em pacientes com covid-19 ou que seja seguro para essas pessoas.
Trump e o estudo francês
Donald Trump, chegou a dizer que o uso da hidroxicloroquina combinada com um antibiótico chamado azitromicina poderia “mudar o jogo” no momento atual da pandemia.
A fala gerou uma corrida às farmácias tanto nos EUA quanto no Brasil, e faltou o medicamento para quem precisava, pessoas que fazem tratamento de lúpus e malária, por exemplo.
Essa situação levou inclusive a Anvisa a restringir a venda e passar a exigir prescrição médica para que ele fosse comercializado.
Nos EUA, um homem morreu e sua mulher foi internada em estado grave após ingerirem a cloroquina como “prevenção”.
Estudo de má qualidade
Em seu comentário, o presidente americano se referia a um estudo francês, o primeiro realizado com seres humanos, e que tem sido duramente criticado pela comunidade científica.
“A qualidade metodológica é tão ruim que ele não pode nem ser usado como referência”, diz o médico cardiologista Luis Correia, professor adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Além de a amostra ser pequena, de apenas 36 pacientes, ele não segue uma série de critérios estatísticos importantes na pesquisa científica: a amostra, por exemplo, não é randomizada – ou seja, os pacientes não são escolhidos aleatoriamente para evitar que haja um viés de confirmação.
O fato de a hidroxicloroquina ser combinada com outro medicamento é outro problema, porque, dessa forma, não se sabe sobre o efeito do medicamento em si.
Natalia Pasternak, diretora do Instituto Questão Ciência, destaca ainda que não tem se dado a devida atenção a um dado importante. Da amostra de 36 pacientes, 6 foram excluídos do estudo porque, do total, 3 foram parar na UTI, um morreu, outro resolveu abandonar o tratamento por causa dos efeitos colaterais, porque estava sentindo muita náusea, e outro decidiu deixar o hospital.
Ela destaca ainda que em um momento de pandemia como o atual, em que os cientistas estão correndo contra o tempo para tentar desenvolver um tratamento e salvar o máximo possível de vidas, é compreensível que em alguns casos se decida não ter o rigor de pesquisa que se tem em tempos normais, mas isso não é desculpa para se fazer o que na visão dela é um trabalho ruim.
Um contraexemplo nesse sentido citado por ela é um estudo também recente, deste mês de março, realizado na China com 30 pacientes e que usou, por exemplo, a randomização para selecionar a amostra.
O resultado, noticiado pela agência Bloomberg, não mostrou diferença entre o tratamento convencional para pacientes com covid-19 e aqueles que foram submetidos à hidroxicloroquina.
Este último é uma variante considerada mais segura da cloroquina. Ainda assim, o uso desse medicamento pode causar uma série de efeitos colaterais, entre eles cegueira, problemas no coração e no fígado.
A liberação para uso no Brasil
O protocolo para uso do fármaco no Brasil restringe sua utilização para pacientes graves internados em hospitais. O tratamento deve acontecer por cinco dias, sob supervisão médica. O Ministério da Saúde anunciou a distribuição de 3,4 milhões de unidades do medicamento para os Estados.
Uma nota técnica da Anvisa publicada antes da liberação pontuava que o sucesso dos estudos pré-clínicos com o uso do medicamento justificava a pesquisa clínica em pacientes com covid-19. Nesse sentido, a agência destacava que dados de segurança e dados de ensaios clínicos de maior qualidade eram, portanto, urgentemente necessários.
“A Anvisa reforça que, para a inclusão de indicações terapêuticas novas em medicamentos, é necessário conduzir estudos clínicos em uma amostra representativa de seres humanos, demonstrando a segurança e a eficácia para o uso pretendido”, encerra o texto.
Para Pasternak, a liberação da cloroquina e da hidroxicloroquina no Brasil aconteceu de forma prematura e irresponsável, já que, além de não haver evidências científicas concretas de que ele funcione, será usado em pacientes graves, possivelmente com alguma comorbidade – como diabetes e cardiopatias -, e que podem sofrer efeitos adversos significativos.
Para Luis Correia, que é também diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências, a medida vem com o risco de que se foque na novidade e de que se esqueça do que é importante, que é a qualidade assistencial aos pacientes e a segurança.
Ele acrescenta ainda que não se trataria de um “tudo ou nada” – ou se usa o medicamento ou se deixa as pessoas morrerem.
Já existe um protocolo médico em casos graves de covid-19, com uso de respiradores e o controle de congestão pulmonar.
O Brasil tem registrado casos de pacientes internados em UTIs que conseguiram se recuperar quando submetidos a esses procedimentos.
Assim como, nos últimos dias, de pacientes que foram submetidos à cloroquina e também saíram de quadros mais severos.
Cientistas de todo o mundo seguem testando o medicamento
Estudo global
Existe hoje um esforço internacional para testar se o medicamento é de fato eficiente e seguro contra o novo coronavírus.
A cloroquina e sua variante estão entre os quatro fármacos que estão sendo estudados em uma iniciativa lançada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) batizada de Solidariedade.
Além dela, os cientistas também estão estudando a viabilidade de uso de um medicamento concebido para tratar o ebola, que não se mostrou eficaz contra a doença mas tem tido bom desempenho contra covid-19 em testes laboratoriais; uma combinação de dois remédios usados no tratamento de HIV, ritonavir e lopinavir; e uma combinação entre esses dois e o interferon-beta, um fármaco que ajuda a controlar inflamações e se mostrou eficaz em animais infectados por outro coronavírus, o que causa a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers).
No Brasil, foi lançado recentemente o Projeto Coalizão Covid Brasil, liderado pelos hospitais Albert Einstein, Sírio Libanês e HCor, além da Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva, para, entre outros objetivos, realizar testes clínicos com a cloroquina e a hidroxicloroquina.
A ideia é realizar testes em 70 hospitais pelo país em mais ou menos mil pessoas com diferentes quadros: dos leves aos mais graves, inclusive aqueles que estão na UTI.
A pesquisa deve durar entre dois e três meses.
R7