O alerta voltou a soar alto nas últimas semanas.
A pandemia de coronavírus agravou o problema da fome em muitos países e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) avisou na segunda-feira (13/07) que a crise pode levar a um aumento de 83 milhões a 132 milhões no número de pessoas desnutridas no mundo em 2020.
Um dos países mais seriamente afetados é a Venezuela, onde os níveis de nutrição de crianças menores de cinco anos já são comparáveis aos dos locais mais pobres do planeta.
Dois dias depois, a organização humanitária britânica Oxfam publicou um alerta sobre “o vírus da fome”, no qual a Venezuela é listada como um dos dez principais “pontos críticos”.
“Mesmo antes da pandemia, mais da metade das pessoas famintas da América Latina já viviam na Venezuela”, afirmou a Oxfam.
E, de acordo com a organização humanitária, já há indícios de que um número crescente de venezuelanos “está reduzindo a quantidade e a qualidade dos alimentos em sua dieta”.
A Oxfam estima que, até o final do ano, cerca de 12 mil pessoas podem morrer de fome por dia como consequência da crise da covid-19 em todo o mundo. Isso é, segundo a organização, “potencialmente mais do que aqueles que morrerão da própria doença”.
E, no momento, entre seus “pontos críticos”, apenas o Iêmen, a República Democrática do Congo e o Afeganistão excedem os 9,3 milhões de famintos que a ONG britânica estima existirem na Venezuela.
O número também equivale a 33% dos domicílios em situação de grave insegurança alimentar identificados na última atualização da Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi), um aumento de 10% em relação aos resultados de 2018.
Mas, de acordo com o indicador – com o qual a Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) mede a realidade econômica e social da Venezuela desde 2014 -, menos de um em cada 10 domicílios no país (7%) está completamente livre de insegurança alimentar, um número que pode ser reduzido para 3% como resultado da pandemia.
“O percentual de famílias com insuficiência alimentar moderada cresce porque, além da preocupação com a falta de alimentos, também há ajustes na disponibilidade de recursos que afetam a qualidade da dieta”, diz a pesquisa Encovi.
Para Luis Pedro España, diretor do Projeto de Estudos da Pobreza da UCAB, essa é uma consequência inevitável do crescimento da pobreza em um país que, segundo o sociólogo, já é o mais pobre de toda a América Latina.
A mesma pesquisa estima que nove em cada 10 famílias venezuelanas (96%) têm pobreza de renda, enquanto a pobreza multidimensional (relacionada a indicadores como educação, padrão de vida, emprego, serviços públicos e moradia) já afeta 64,8 % de famílias, um aumento de 13,8% entre 2018 e 2019.
Estima-se que o PIB da Venezuela tenha diminuído 70% entre 2013 e 2019. E a uma renda média diária de US$ 0,72 (R$ 3,84), é adicionada inflação que, em março, já era de 3.356%.
Isso em uma região na qual uma dieta mínima capaz de atender às necessidades de energia custa US$ 1,6 (R$ 8,53) por pessoa por dia, de acordo com o relatório Estado de Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2020, publicado pela FAO.
Enquanto isso, o custo de uma dieta saudável sobe para US$ 3,98 (R$ 21,22) por dia por pessoa, muito além do alcance da maioria dos venezuelanos.
Iniciativas governamentais, como a entrega de alimentos por meio dos chamados Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) parecem insuficientes.
O governo também manteve ativo o programa de Alimentação Escolar e, desde o início da pandemia de coronavírus (que fechou todas as escolas venezuelanas), entregou comida em Caracas e nos Estados de Mérida e Portuguesa.
Em uma dessas entregas, em junho, Akalapeizime Castro, chefe da entidade pública Mercal, encarregada de combater a insegurança alimentar, disse que “nessa quarentena coletiva, o governo garante alimentos para as populações mais vulneráveis”.
Mas, de acordo com a Oxfam, existem evidências abundantes de que muitas pessoas foram forçadas a eliminar carnes, laticínios e vegetais de sua dieta para substituí-los por alimentos mais baratos, como cereais.
“A escassez de combustível, exacerbada pelo bloqueio, está afetando a distribuição da ajuda humanitária e interrompendo a produção e o transporte de alimentos”, acrescentou a organização.
O Ministério da Comunicação da Venezuela não respondeu a um pedido de informações da BBC News Mundo.
O sociólogo Luis Pedro España diz que em um a cada quatro lares venezuelanos “a angústia pela falta de comida vem junto com a diminuição de recursos para cobrir a quantidade e a qualidade da dieta”.
E os problemas alimentares não se limitam às famílias mais pobres: o consumo médio global de proteína por dia está bem abaixo de 51 gramas por dia. E, mesmo entre os 20% mais ricos, apenas 24,7 gramas são consumidas por dia.
O consumo de calorias também é deficiente nos 60% mais pobres e, com 2.006 quilocalorias por dia, a média nacional está apenas dentro do mínimo recomendado.
O resultado é que 166 mil crianças com menos de cinco anos (8% do total) são enquadradas como desnutridas, de acordo com o indicador de peso por idade, bem acima de 2,3% no Peru e 3,4% na Colômbia.
Mas o número aumenta para 639 mil (30% do total) se considerarmos a desnutrição crônica evidenciada pela estatura, acima dos 22% do Haiti e 21,2% da República Democrática do Congo, e mais perto de 31,7 % dos Camarões e 33% da Nigéria do que o restante da América Latina, onde o país com desnutrição mais crônica permanece a Guatemala, com 46,7%.
E, devido à pandemia, a migração em massa, que durante muito tempo foi uma válvula de escape, não parece mais uma alternativa viável.
Segundo uma pesquisa citada pela Oxfam, 42% dos 1,6 milhão de venezuelanos que emigraram para a Colômbia podem ter perdido o emprego e um quarto pode não dispor de recursos para comprar alimentos.
“E isso também está causando um impacto na Venezuela, onde dois milhões de famílias dependem das remessas do exterior para sobreviver”, acrescenta a organização.
A situação, como destacou o reitor da UCAB, padre Francisco José Virtuoso, é desesperadora. O jesuíta diz que os dados da Encovi testemunham “a destruição acumulada na qualidade de vida dos últimos cinco anos”.
“Não podemos nos conformar em ver nossa juventude partir”, disse ele.
Mas o tempo é curto, porque, como a própria Encovi alerta, as consequências de longo prazo da atual situação nutricional da Venezuela “podem ser irreversíveis”.
R7