A pandemia do coronavírus transformou as dinâmicas criminais em São Paulo. O terceiro trimestre desse ano, marcado pela flexibilização do isolamento social, registrou 938 vítimas de violência letal. Isso significa dizer que houve um aumento de 6,1% no número de pessoas mortas pela polícia, lesão corporal seguida de morte, latrocínios e homicídio doloso em comparação ao 3º trimestre de 2019. Os números foram divulgados neste mês pelo Instituto Sou da Paz.
Apesar do baixo nível de esclarecimento dos homicídios, a diretora executiva do Sou da Paz, Carolina Ricardo, afirma que alguns fatores podem ajudar a entender o aumento dos homicídios em São Paulo. “Esse movimento pode ser decorrente de conflitos interpessoais, afinal, as relações mudaram com a pandemia”, diz ela.
“A disseminação do vírus também afetou os negócios e a produção econômica. A dinâmica de obtenção de recursos do crime mudou, a venda de drogas foi impactada, a cobrança de dívidas, o que pode ter ocasionado um aumento na violência letal”, explica.
Segundo ela, o estado de São Paulo apresentava uma queda ininterrupta no número de homicídios. “Houve uma interrupção nessa queda, o que é algo a se preocupar”, diz. Em relação a essas categorias de crimes violentos, apenas os homicídios dolosos registraram um aumento nas ocorrências de 13,2% (de 615 para 696 casos), índice que estava em queda progressiva desde 2013. “Essa tendência acende uma luz amarela importante e serve para que as autoridades fiquem atentas para prevenir e poder dar uma resposta adequada às famílias das vítimas.”
Segundo o estudo, o interior registrou um aumento ainda mais significativo. Seis regiões paulistas apresentaram crescimento de 17% em suas taxas de homicídios, entre elas Piracicaba e Sorocaba. Essas duas regiões quase dobraram os números de homicídios dolosos no 3º trimestre de 2020. A diretora do Sou da Paz explica que não é possível apontar uma relação direta entre o crescimento de homicídios no interior de São Paulo e os grandes assaltos ocorridos ao longo do ano. “Mas, é importante lembrar que cidades do interior são marcadas pela presença do crime organizado.”
A mudança nas dinâmicas criminais também teve impactos em algumas operações da polícia. Segundo o instituto, no 3º trimestre desse ano foram registradas 39.906 prisões enquanto, nesse mesmo período do ano passado, foram computadas 54.637. “Diminuiu o número de prisões em flagrante e houve menos crimes patrimoniais”, afirma. O número de armas apreendidas também caiu. No último trimestre desse ano, foram apreendidas 2.886 armas e no ano passado, 3.071.
Entre os homicídios, a pesquisa registrou um aumento nos casos feminicídios. No terceiro trimestre de 2019, foram 90 vítimas, e, em 2020, 104 mulheres assassinadas – um crescimento de 15,6%. O aumento mais significativo se deu no interior do estado, com um crescimento de 21%. Os dados também mostraram uma queda de 8,5% nas agressões intencionais contra mulheres.
Para diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, o aumento de feminicídios ao mesmo tempo em que se registra uma queda nos registros de violência contra a mulher chama a atenção para a possibilidade de subnotificação das denúncias. “Os dados acendem um alerta para este momento em que muitas mulheres vítimas de violência doméstica estão isoladas em casa com seus parceiros”, afirma.
“A violência doméstica aumentou no período da pandemia, portanto, é preciso atuar preventivamente, com ações para verificar a recorrência de chamados policiais num mesmo endereço, pois feminicídios muitas vezes ocorrem após uma sequência de violências anteriores”, diz. A diretora do Sou da Paz explica ainda que o número de registros diminui porque muitas mulheres não conseguem sair de casa para fazer o boletim de ocorrência. “No caso dos feminicídios, não tem como não registrar porque existe um corpo”, afirma.
O estudo mostrou ainda que a letalidade policial, que registrou altos índices nos dois primeiros trimestres do ano, caiu 16,5% em relação a 2019 no último trimestre, com 167 mortes. Das mortes cometidas pelas polícias paulistas, 135 foram durante o serviço (80,8%) e 32 em período de folga (19,2). Em relação à vitimização de policiais nesse terceiro trimestre, observou-se estabilidade nos números (foram 12 policiais mortos) quando comparamos com o terceiro trimestre de 2019 (quando morreram 10 policiais).
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“É preciso reconhecer e comemorar a queda na letalidade policial, mas alertar que o volume de mortes ainda é alto. O desafio agora é entender melhor quais as medidas tomadas para que a redução acontecesse e garantir que a queda seja sustentável nos próximos períodos, refletindo uma tendência, e não apenas um esforço importante, mas momentâneo”, diz Carolina.
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A Polícia Militar, afirma a especialista, passou a implementar estratégias como discussões de casos, procedimentos utilizados e celeridade nas apurações internas. “Quando o uso da força letal se torna uma preocupação para as autoridades elas conseguem controlar”, explica. Para o próximo ano, no entanto, é importante compreender, alerta a especialista, as razões que motivaram a redução dos homicídios, a diminuição dos registros de violência doméstica e a queda da letalidade policial. “Precisamos observar se é algo pontual uma nova tendência nas modalidades criminais”, diz.
R7