Travessia. Um ir e voltar. Retornar, retomada. O movimentar de corpos-memórias que resistem. O visibilizar da contribuição e presença negra e indígena no interior da Bahia. Assim se faz, Sertão Sankofa, um quilombo/aldeia artístico idealizado pela performer conquistense Dani de Iracema, que retorna a cidade natal para oferecer este projeto autoral que conecta artistas negros e indígenas em uma residência artística que terá como resultado uma performance coletiva que fará a abertura da duas apresentações do solo “Memórias imaginadas das terras por onde andei”, no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, em Vitória da Conquista, nos dias 18 e 21 de outubro, respectivamente.
No primeiro dia ocorre ainda a roda de conversa “Sertão Afroindígena”. A segunda apresentação, às 19h, integra a programação do FUICA – Festival Universitário Intercampi de Cultura e Arte – UESB. A performance – que tem como artistas integrante Afrontosa Let, Duda Nazaré, Jade Roxo, Raffá Obá Mirim e Rafa Pereira – é fruto de uma residência artística ocorrida em duas etapas (Raízes Íntimas e Raízes Coletivas) desde 11 de outubro, que teve como abertura uma vivência com Vando Oliveira, artista plástico indígena Paneleiro-Mogoyó. Durante o processo, os performers vivenciaram a comunidade quilombola Batalha, localizada na zona rural de Vitória da Conquista que, assim como outras comunidades quilombolas da região, está reivindicando a ancestralidade indígena e o reconhecimento do território como Aymoré-Mongoyó.
Já o espetáculo solo “Memórias imaginadas das terras por onde andei” é uma narrativa performática autobiográfica em que a atriz-performer Dani de Iracema, nascida e criada no sertão da Bahia, em Vitória da Conquista, mergulha no seu processo de migrar do interior para a capital, mas também acessa, por meio da imaginação, memórias de como sua ancestralidade africana chegou no sertão baiano. Uma fabulação de memórias sobre construção de pertencimento do corpo enquanto território afro-originário, atravessado por banzo, fugas, retirâncias, o reinventar e apontar de caminhos de retorno e retomada para terras arrancadas.
Corpografia
Em 2024, completa dez anos que a artista Dani de Iracema chega a Salvador para estudar, um caminho comum para artistas interioranos em busca de formação artística no ensino superior. É na capital afro que também passa pelo seu processo de reconhecimento e afirmação da negritude – o gingar da capoeira angola ensinada por Mestre Renê e o samba de roda com mestras sambadeiras como Dona Aurinda do Prato e Dona Dalva Damiana.
A convivência com mestres e mestras das tradições afro diaspóricas levou Dani de Iracema (dentre tantos ensinamentos) a um processo de descolonização do corpo. “Estar com os mestres me levou a perceber a importância de contar a minha história. Falar do seu lugar, do seu bairro, da sua comunidade, da sua família, tudo isso é falar da gente. Em um país onde a História é contada pelos colonizadores, falar de nós, por nós, é resistir à invisibilização das nossas narrativas”.
Foi guiada por este aprendizado ancestral que a artista criou em 2019 o solo de dança contemporânea, que perpassa por memórias dos seus ancestrais africanos chegando no sertão da Ressaca, território habitado por indígenas Aymorés, Pataxós e Mongoyós. Os deslocamentos forçados inscritos em sua ancestralidade, a faz cartografar memórias de fuga e banzo, e corpografar imagens de retorno e retomadas.
Sertão da Ressaca
A fundação de Vitória da Conquista é um violento mito, conhecido como o banquete da morte, uma emboscada dos Bandeirantes contra os indígenas do Sertão da Ressaca, um banquete que leva ao envenenamento e morte de grande parte dos originários. Por conta desse mito, foi secularmente instalado na cidade que os indígenas Aymorés, Mogoyós e Kamacãs haviam sido exterminados.
Nos últimos 15 anos, essa mentira vem sendo bravamente desmentida. “Sertão Sankofa é retorno, busca, retomada, é voltar e pegar o que foi esquecido, em um território onde o coronelismo ainda impera e privilegia narrativas eurocêntricas, visibilizar a contribuição e presença negra e indígena se faz com a urgência secular de ver nossos corpos e histórias iluminados, não mais na sombra do apagamento, do epistemicídio, na sanha da violência colonial”.
Assim, o projeto Sertão Sankofa propõe ser um quilombo, “espaço simbólico do corpo que se move, cuja potência concretiza-se no encontro com outros corpos, na circulação, no movimento negro comunitário do corpo-memória que resiste”; uma aldeia artística que busca alimento no que veio antes para plantar novas narrativas com raízes que dançam e voam fazendo encatarias poéticas para lembrar, para não esquecer quem somos.
Sertão Sankofa foi contemplado nos Editais da Paulo Gustavo Bahia e tem apoio financeiro do Governo do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura via Lei Paulo Gustavo, direcionada pelo Ministério da Cultura, Governo Federal. Paulo Gustavo Bahia (PGBA) foi criada para a efetivação das ações emergenciais de apoio ao setor cultural, visando cumprir a Lei Complementar no 195, de 8 de julho de 2022.
Retirâncias
Dani de Iracema é mãe e artista multidisciplinar. Sua prática e pesquisa artística gira em torno da fabulação de memórias, autobiografias, retomadas, conectando o pulsar das tradições e a contemporaneidade. Licenciada em Dança pela UFBA, a artista nascida em Vitória da Conquista, atualmente vive e trabalha em Salvador. Sendo esta retirância tema comum de seus projetos autorais. Além do solo performático “Memórias Imaginadas das Terras por Onde Andei”, desenvolve o projeto “Escuro Fértil – oficinas-rituais de autorretrato e fotoperformance para mulheres negras e indígenas”; e desenvolveu em 2021 o projeto multidisciplinar ORÍginárias – vivências artístico-literárias em parceria com Juci Reis e Flotar Programa (MX-BR).