Embora os casos de morte por febre amarela sigam subindo desde o começo de 2017 e tenham atingido o número de 93 vítimas no último dia 23 (contra 76 até o dia 16, segundo a Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo), milhões de doses da vacina fracionada continuam dentro dos refrigeradores dos postos de saúde, à espera da população.
Na prática, a situação em São Paulo passou de uma corrida desenfreada aos locais de vacinação para o encalhe de doses.
O não comparecimento do público na frequência desejada pelas autoridades fez com que o fim da campanha de vacinação no Estado fosse postergada do dia 17 de fevereiro para o dia 2 de março. No entanto, a três dias do término do prazo estendido, 5,1 milhões de pessoas não foram vacinadas em 54 cidades abrangidas pela campanha. A proposta é imunizar 9,2 milhões nesses locais.
“No início, as pessoas saíam de áreas não visadas pelo vírus para se sujeitar a pegá-lo nas filas das regiões em que havia casos; agora sobram doses nos postos”, afirma Regiane de Paula, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. “A gente vai ter de traçar uma segunda estratégia para atingir a meta dessa imunização preventiva.”
Se a doença em si assustou em um primeiro momento, a população parece agora mais preocupada com eventos adversos da vacina. Um dos sinais disso são postagens que pipocam nas redes sociais atribuindo ao produto complicações as mais variadas possíveis: “Tem gente que está perdendo filho na barriga por conta de ter tomado a vacina”, “Vacina causa outras doenças no futuro, como câncer”, “Vacina é armadilha”, “60 médicos americanos dizem ao mundo não tomem o veneno da vacina da morte da febre amarela”.
A vacina tem eficácia superior a 95%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), e, mesmo fracionada, protegeria a pessoa por no mínimo oito anos. Em seguidas entrevistas, Helena Sato, diretora de Imunização da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo e colega de Regiane, faz questão de reiterar em frente das câmeras: “Não precisamos ter medo dessa vacina, ela é excelente”.
Desde janeiro de 2017, poucos são os casos de óbitos atribuídos oficialmente a uma reação à vacina da febre amarela – mais precisamente, apenas três pessoas entre quinze suspeitas, todas no Estado de São Paulo e todas com menos de 60 anos e sem registro de doenças anteriores.
De qualquer forma, efeitos fora do script estão previstos não apenas para a vacina da febre amarela, mas para muitas outras.
No Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação, elaborado pelo Ministério da Saúde e em sua terceira edição, é possível encontrar reações graves e não graves às vacinas de difteria, tétano, pertússis (coqueluche), hepatite A, hepatite B, BCG, cólera, febre tifoide, influenza, HPV, poliomielite, raiva, rotavírus humano, sarampo, caxumba, rubéola, varicela e febre amarela. O manual funciona como uma bula quilométrica, com 250 páginas, voltada a profissionais da saúde.
Uma de suas principais referências é a Brighton Collaboration, organização sem fins lucrativos sediada na Suíça que conta com cinco mil especialistas dedicados a tornar as vacinas cada vez mais confiáveis.
“O sucesso das vacinas implica que a imunização permaneça o mais segura possível, particularmente porque é oferecida a indivíduos saudáveis”, lembra o grupo no seu site, enfatizando que a responsabilidade aumentou nos últimos tempos devido à distribuição mais rápida e ampla do produto pelo mundo.
Quais são os efeitos adversos?
O capítulo do Manual de Vigilância dedicado à vacina da febre amarela toma 9 páginas. Na introdução, o manual lembra que o imunizante é utilizado na prevenção à doença desde 1937. Composto por vírus vivo atenuado da cepa 17DD ou equivalente, cultivado em ovos de galinha embrionados, contém sacarose, glutamato, sorbitol, gelatina bovina, eritromicina e canamicina.
Daí sua primeira contraindicação: indivíduos com história de reação anafilática a qualquer uma dessas substâncias, incluindo ovo de galinha, deve sair da fila de vacinação e voltar para casa.
Seguem na linha de risco crianças menores de 6 meses de idade (a recomendação na campanha do Estado de São Paulo é de 9 meses como idade mínima), pacientes com imunodepressão de qualquer natureza – de transplantados a pessoas submetidas a tratamento com quimioterapia – e idosos com 60 anos ou mais que buscam a vacina pela primeira vez.
São considerados efeitos adversos leves febre, dor no local da aplicação, vermelhidão, dor de cabeça, dor abdominal. Entre os graves, estão encefalite, meningite, doenças autoimunes com envolvimento do sistema nervoso central e periférico, como a Guillain-Barré, afora infecção semelhante à forma severa da doença, chamada de doença viscerotrópica aguda. Ela normalmente começa com ânsia, vômito e fadiga e pode evoluir para sintomas como dificuldade para respirar, taquicardia, hemorragia, insuficiências hepática e renal. Em alguns casos leva a óbito.
O manual cita que, de 2007 a 2012, a incidência dos efeitos adversos graves foi de 4,2 casos por 1 milhão de doses administradas. Regiane de Paula fala em um caso de morte a cada 500 mil. Ou seja, dois casos em 1 milhão.
Ela ressalta que os efeitos adversos da vacina da febre amarela estão muito bem estabelecidos e que apenas 5% deles podem evoluir para uma doença viscerotrópica aguda, por exemplo.
Nas redes sociais, os efeitos adversos se amplificam
Ocorre que certos casos ainda não esclarecidos desses efeitos vicejam no Facebook e no YouTube, alargando ainda mais o pé atrás quanto ao produto.
Um deles é o de Vitória Marina Souza Gomes, de 15 anos. No dia 10 de janeiro, quarta-feira, a adolescente procurou um posto de vacinação no bairro de Comendador Soares, em Nova Iguaçu. Baixada Fluminense. Queria tomar a vacina da febre amarela.
A garota não morava em área visada pelos mosquitos transmissores da doença, tampouco pensava em passear em um lugar assim. Mas havia “um medo lançado no ar”, como lembra a irmã Lorena Gomes, e Vitória achou por bem se proteger recebendo no corpo um vírus vivo atenuado.
No dia seguinte, sentia enjoo e dores abdominais. O quadro agregou febre alta e dor de cabeça forte. No domingo, acordou com os olhos inchados e a dor de cabeça não dava sinal de passar. Na segunda, veio uma convulsão. O edema, que começou nos olhos, se espalhou pelo rosto e pescoço.
Sucedeu-se uma semana angustiante, agora com vermelhidão e dores tão fortes pelo corpo que ela mal caminhava sozinha. Até que surgiu a dificuldade para respirar. Dezesseis dias depois de tomar a vacina, Vitória teve três paradas cardíacas. Morreu no Hospital Geral de Nova Iguaçu. O causador oficial da morte, aquele que consta do atestado de óbito, não foi o flavivírus da febre amarela, mas uma bactéria, a Staphylococcus aureus. Para os médicos, Vitória morreu devido a uma pneumonia.
A família, no entanto, aposta que a vacina teve seu papel nesse calvário. Priscila, a mãe de Vitória, diz ter avisado sobre essa imunização aos profissionais que atenderam a garota tanto na UPA quanto no Hospital Souza Aguiar e no Nova Iguaçu, também conhecido como Hospital da Posse. “Mas preferiram apostar em sinusite, conjuntivite, alergia, infecção urinária, lúpus”, afirma Lorena.
No dia 24, diz a irmã, os médicos coletaram sangue para fazer o exame da febre amarela com o propósito de enviá-lo para análise em São Paulo. Os familiares ainda não receberam o laudo dessa avaliação. Vitória sofria de bronquite, mas a família afirma que a moléstia estava sob controle. Foi isso o que teria relatado à agente de saúde quando perguntada sobre sua condição física antes de receber a agulhada no braço. “Ela foi liberada para tomar a dose”, conta Lorena.
Depois do acontecido, os Gomes não querem mais saber de imunização alguma – ainda que o irmão da adolescente, que também sofre de bronquite, tenha manifestado apenas dor de cabeça depois de se imunizar junto com ela.
A rejeição é compartilhada por quem visitou a página no Facebook de Lorena antes e depois da morte de Vitória. Não faltaram comentários baseados em teorias da conspiração: “O governo quer acabar com o povo”, “A vacina é uma fraude”, “Nunca confiei nessas vacinas, veja o caso do ebola, tudo criado”, “Tá parecendo aquela injeção que mata”, “Posso morrer de febre amarela, azul ou roxa, menos de vacina; disso sim já estou imunizada”.
Apuração dos casos é lenta
Quando perguntada sobre a demora na apuração dos casos suspeitos – reclamação não somente da família de Vitória mas de outras cujos parentes padeceram depois da vacina e que ainda aguardam o resultado do Adolfo Lutz sobre a causa da morte -, Regiane de Paula afirma que o processo não é tão simples assim.
“São feitos, entre outros, um exame de histopatologia e de PCR (técnica de isolamento viral), além do levantamento do histórico familiar para confirmar se a pessoa tinha ou não uma doença de base”, diz.
Para atestar um efeito adverso, continua a diretora, os critérios e as etapas são mais longos e complexos do que confirmar um caso de febre amarela “puro”, transmitido pela picada de um mosquito Haemagogus ou Sabethes.
Segue sem resposta o caso do menino Murilo Pio, de 3 anos, que morreu no dia 19 de janeiro, cinco dias após a vacinação.
O Hospital Renascença, em Osasco, que o diagnosticou em um primeiro momento com nasofaringite aguda, recebeu a criança dois dias depois, já em um quadro de contrações musculares da face seguido de crise convulsiva generalizada. A parada cardiorrespiratória aconteceu às 15h55 da sexta-feira. Às 16h35 os médicos atestaram a morte, após intubação orotraqueal e manobras de reanimação sem sucesso.
Entre os comentários virtuais depois do falecimento de Murilo, mais indignação: “A vacina está matando mais que a tal febre, ‘gadão’ sem noção”, “Isso tem nome e chama-se homicídio culposo”, “Temos tecnologia para produzir uma vacina com vírus morto, mas não é de interesse pois é um vírus que existe no 3º mundo e não há retorno financeiro”.
Um histórico de revoltas
Não se vislumbra no cenário de imunização no Brasil nada que lembre a Revolta da Vacina, em 1904, na cidade do Rio de Janeiro, quando a população virou bondes, danificou fachadas de prédios, quebrou árvores e destruiu lampiões para protestar contra a vacina da varíola.
Na época, os agentes sanitários invadiam as casas e aplicavam as injeções à força. Para quem acreditava que se tratava de uma tática do Estado para exterminar as camadas mais humildes, a violência dos agentes só fez aumentar o rechaço.
Em uma proposta muito mais conciliadora, agentes comunitários têm visitado domicílios em bairros de São Paulo para saber quem tomou ou não a vacina. Aproveitam para distribuir uma senha de vacinação aos que ainda não se protegeram e esclarecer dúvidas. Os eventos adversos costumam ocupar o topo das perguntas.
“Ainda não temos certeza, mas acho que o Carnaval e o período de férias contribuíram para essa drástica diminuição na procura pela doses”, cogita Marco Antônio Carvalho de Lima, coordenador de saúde da região Sul do município de São Paulo.
Na visão geral, diz ele, ainda vigora a percepção de que a vacina, se não mata, traz algum efeito colateral que pode comprometer um período de relaxamento e descontração, por exemplo. Com a volta ao ritmo normal, a proposta é convencer a população de que não há nenhuma conspiração embutida na fórmula do produto.
R7