O Estado brasileiro vive uma grave crise fiscal. Em 2018, as contas da União fecharam no vermelho em R$ 120,3 bilhões. Mas em certos setores do serviço público, a crise parece não existir. É o caso de seis diplomatas que atuam no exterior e que recebem, cada um, mais de US$ 10 mil mensais de reembolso pelo aluguel de suas residências. O menor valor (US$ 10.014,27) equivale a R$ 41.191,70, segundo a cotação da última sexta-feira (11).
Além de Hong Kong, os outros “super-auxílios” são pagos a diplomatas em Nova York e São Francisco (EUA); em Genebra (Suíça) e em Sydney (Austrália).
As informações desta reportagem foram obtidas pela BBC News Brasil por meio da ferramenta Siga Brasil, do Senado Federal. Os mesmos dados foram confirmados pelo Ministério das Relações Exteriores, em resposta a um pedido formulado nos moldes da Lei de Acesso à Informação (LAI). A princípio, nada há de irregular ou ilegal nos reembolsos – apesar do contraste com os cortes de verbas em outras áreas do serviço público.
Os reembolsos de aluguel pagos aos diplomatas estão entre os maiores do governo federal – senadores da República, por exemplo, recebem R$ 5,5 mil, caso não usem apartamentos funcionais. Como, no entanto, não existem dados unificados sobre este tipo de pagamento em todos os poderes, é impossível afirmar com certeza que o auxílio-moradia recebido pelos diplomatas é o maior da República.
O orçamento total do MRE para o ano de 2019 é de R$ 3,6 bilhões – incluindo despesas obrigatórias, como a folha de pagamentos, e discricionárias.
Só para pagar reembolsos de gastos com moradias, R$ 145,5 milhões já foram pagos em 2019, de acordo com informações obtidas por meio do Siga Brasil.
Aluguéis mais caros do mundo
O maior reembolso, de US$ 17.057,29 (ou R$ 70.161,75) é pago a um diplomata do topo da carreira que vive e trabalha em Hong Kong, uma região administrativa especial da China e palco de recentes protestos.
Na outra ponta da pirâmide, o dinheiro seria suficiente para bancar o benefício médio do Bolsa Família em 2019 (de R$ 186,23) a 376 famílias.
O detentor do maior benefício mensal é o atual cônsul brasileiro em Hong Kong. Ingressou no MRE em 1974, e chegou ao topo da carreira (ministro de primeira classe, no jargão do Itamaraty) em 2004.
Há uma boa razão para o aluguel da residência funcional do cônsul ser tão caro: Hong Kong é a cidade com os aluguéis mais caros do mundo, de acordo com um relatório publicado em maio deste ano pelo banco alemão Deutsche Bank.
Com exceção de Genebra, todas as outras cidades onde diplomatas brasileiros recebem “super-auxílios” estão no top 10 da lista de preços elaborada pelo banco alemão: é o caso em São Francisco (2º lugar mais caro), Nova York (3º) e Sydney (9º).
Mesmo assim, os valores recebidos pelos diplomatas brasileiros são suficientes para alugar imóveis de alto luxo nesses lugares.
Em Hong Kong, por exemplo, o aluguel de um apartamento de dois quartos custa, em média, US$ 3,6 mil mensais, de acordo com o levantamento do banco alemão.
Para efeito de comparação: por 120 mil dólares de Hong Kong (HKD) ao mês (ou US$ 15,3 mil), é possível alugar um apartamento duplex de luxo, com quatro quartos e pouco mais de 300 metros quadrados. Loalizada em uma pequena península a partir da expansão da cidade erguida originalmente em uma diminuta ilha, Hong Kong é famosa por suas moradias apertadas.
Além do cônsul, outro diplomata brasileiro em Hong Kong também recebe mais de US$ 10 mil mensais para o aluguel. Para este segundo profissional, o Itamaraty banca um reembolso de US$ 11,9 mil mensais.
Ao contrário do cônsul, porém, este segundo diplomata não está no topo da carreira: ocupa hoje o posto de segundo-secretário (a progressão no Itamaraty começa pelo posto de terceiro-secretário, imediatamente abaixo daquele de segundo-secretário).
Em Nova York, onde o preço médio levantado pelo Deutsche Bank para um imóvel residencial é de US$ 2,9 mil mensais, o atual cônsul brasileiro recebe US$ 16 mil por mês para cobrir suas despesas com aluguel.
Com este dinheiro, segundo um corretor de imóveis da cidade consultado pela reportagem da BBC News Brasil, é possível alugar “coberturas e apartamentos ultra-luxuosos em bairros exclusivos”. “Certamente, com US$ 16 mil por mês é possível pagar um apartamento muito luxuoso (em Nova York)”, disse Zachary Assael-Berkowitz Staggers por meio de mensagem de texto.
Outro empreendedor imobiliário da cidade, Jonathan J. Miller, enviou à reportagem um levantamento de preços específico para Nova York. O aluguel médio de um imóvel residencial na ilha de Manhattan (a parte mais antiga) fechou o mês de agosto em US$ 3,5 mil. Miller comanda uma empresa do ramo imobiliário na cidade, a Miller Samuel Inc.
Ele enviou à BBC News Brasil exemplos de aluguéis contratados em agosto de 2019 por US$ 16 mil mensais.
Saiu por este preço, por exemplo, um apartamento de 197 metros quadrados e três quartos na esquina da Laight Street com a West Street. O local fica no bairro de Tribeca e está bem perto de vários pontos icônicos de Nova York: a 1.200 metros do memorial do World Trade Center, destruído no atentado de 2001; e a 1.800 metros da famosa estátua Charging Bull, ponto obrigatório dos turistas que visitam o centro financeiro de Wall Street.
O mesmo dinheiro alugou um apartamento de três quartos e 183 metros quadrados no Upper East Side, a apenas 500 metros do Central Park e do Metropolitan Museum of Art.
Em nota à reportagem, o Itamaraty disse que o imóvel alugado pelo cônsul brasileiro em Nova York é “utilizado como residência e, também, para fins de representação”.
Segundo o especialista em relações internacionais e ciência política Leandro Consentino, a “representação” mencionada pela nota do MRE geralmente consiste em eventos, recepções, coquetéis e outros eventos nos quais os diplomatas reforçam laços com a comunidade do local onde trabalham.
“Isso ocorre na outra mão também. Em São Paulo, por exemplo, você tem eventos que acontecem em casas consulares (de países estrangeiros). E geralmente são endereços em bairros nobres”, diz ele.
Interesse nacional
A linha entre projetar uma imagem favorável do país e fazer gastos públicos exagerados é tênue, diz Consentino.
“Este tipo de gasto pode, ou não, atender ao que se chama de interesse nacional. A ideia é que, se você vai receber estrangeiros numa residência oficial, ela tem de ser bonita, imponente e tal. Você simboliza, desta forma, que o seu país não é um país qualquer. Tudo na política externa são símbolos”, diz.
“A dificuldade é fazer a mediação entre esse mundo simbólico e o mundo dos números, das contas. Se estamos num momento em que o governo faz cortes em diversas áreas, inclusive na educação, é preciso ver realmente o que são esses gastos”, diz Consentino, que é professor do Insper.
De toda forma, o Brasil não é o único país a gastar dinheiro alto com as moradias de seus diplomatas. Em março deste ano, o governo britânico foi alvo de críticas quando a imprensa publicou sobre a compra de um luxuoso apartamento de 574 metros quadrados em Nova York, para servir de residência a um diplomata. O imóvel custou US$ 15,9 milhões.
Crise
Alegando razões de segurança, o MRE não informou os endereços dos imóveis alugados pelos diplomatas. A reportagem tentou contato com os diplomatas beneficiados por meio da assessoria de imprensa da pasta, mas não houve resposta. Como os pagamentos estão de acordo com as normas atuais, os nomes dos profissionais foram omitidos desta reportagem.
Assim como outras pastas do governo, o MRE vem sofrendo os efeitos da crise fiscal e da aplicação do mecanismo conhecido como “teto de gastos”. Em junho deste ano, por exemplo, o órgão anunciou o fechamento de embaixadas em cinco países do Caribe, com o objetivo de reduzir custos.
Além de Nova York, outra cidade bastante cara dos EUA aparece na lista dos ‘super-auxílios’. O cônsul-geral do Brasil em São Francisco, na costa oeste, recebe US$ 13,800 mensais (ou R$ 57,5 mil) para alugar um imóvel na cidade. O aluguel médio de um imóvel de dois quartos na cidade, segundo o Deutsche Bank, é o segundo mais caro do mundo: US$ 3.631 mensais (atrás apenas de Hong Kong).
O cônsul em São Francisco chegou a estar cotado no começo deste ano para suceder o também diplomata Sérgio Amaral no posto de embaixador do Brasil nos EUA. No começo de julho, porém, Jair Bolsonaro indicou seu filho Eduardo para o posto.
A relação de diplomatas com os maiores auxílios para pagamento de aluguéis termina com dois servidores do topo da carreira. Em Genebra (Suíça), um deles recebe US$ 10.769,23 mensais; e em Sydney (Austrália), outro profissional ganha US$ 10.014,27 mensais (o equivalente a R$ 41,7 mil) para pagar o aluguel.
Em 2014, a Folha de S. Paulo publicou reportagem mostrando o caso de um diplomata que recebia US$ 23 mil de reembolso pelo aluguel de um imóvel em Nova York, no Upper West Side. À época, ele era o número dois na hierarquia da missão brasileira na Organização das Nações Unidas (ONU).
Na época, o Itamaraty recusou pedidos do jornal paulistano, via Lei de Acesso à Informação, sobre os auxílios pagos a diplomatas em outros postos.
Há outra peculiaridade em relação ao diplomata de Genebra mencionado acima: o auxílio que ele recebe é US$ 1.430 (ou R$ 5,9 mil) maior que o de outra diplomata também do topo da carreira atuando na mesma cidade. Este segundo diplomata integra a delegação brasileira em Genebra e recebe US$ 9.339,22 mensais (ou R$ 38,9 mil) para cobrir despesas de aluguel de sua residência funcional.
O pagamento de reembolsos aos diplomatas funciona da seguinte forma: primeiro o profissional fecha um contrato com o dono do imóvel, paga o valor ajustado, e só depois apresenta um comprovante para receber o reembolso. As regras para estes pagamentos constam de um documento chamado Guia de Administração de Postos (GAP) – que foi atualizado pela última vez por meio de uma portaria do MRE de novembro de 2017 – antes, portanto do governo de Jair Bolsonaro (PSL).
O valor máximo do reembolso, de acordo com o resposta do Itamaraty à BBC News Brasil, é de determinado pelo cargo ocupado pelo diplomata e pelo posto onde ele se encontra.
“O valor de reembolso máximo para cada servidor é determinado conforme a realidade de mercado de cada cidade e representatividade de cada categoria funcional. Utilizam-se como parâmetros pesquisas locais e consultoria imobiliária da empresa (de consultoria) Mercer”, disse o órgão, em nota.
O reembolso também não cobre outras despesas que o diplomata vai ter para manter o imóvel, como água, energia elétrica, internet: estas contas são pagas pelo servidor. Em algumas situações, o reembolso pode também não ser total: o servidor pode ter de arcar com uma parte do valor do aluguel.
O dinheiro do ‘auxílio-moradia’ pago aos diplomatas também não é incorporado ao salário deles, segundo a pasta. Os gastos são computados, dentro do orçamento do MRE, como verbas discricionárias.
E mais: se dois diplomatas forem casados e trabalharem na mesma cidade, só um deles faz jus ao benefício.
Os diplomatas não são a única categoria que pode receber verbas extras para a locação de imóveis. Juízes, procuradores, defensores públicos, deputados, senadores e vários outros tipos de servidores, eleitos ou concursados, também podem receber este tipo de benefício.
Mas os valores pagos a estes profissionais ficam muito abaixo daqueles recebidos pelos diplomatas: o maior auxílio, de R$ 5,5 mil, é pago hoje a seis senadores que não usam apartamentos funcionais do Legislativo.
Juízes, procuradores e defensores públicos receberam auxílio-moradia de R$ 4,3 mil durante quatro anos (de 2014 até o fim de 2018) graças a uma decisão liminar (provisória) do ministro do STF Luiz Fux. O benefício era pago até mesmo para quem tinha imóvel na cidade onde trabalhava e para os dois cônjuges, no caso de um casal formado por dois beneficiários.
Finalmente, em novembro de 2018, Fux revogou a própria liminar depois de um acordo com o então presidente da República, Michel Temer: o mandatário sancionou um aumento de 16,3% nos salários dos ministros do STF, com efeitos sobre os salários de todos os demais integrantes da magistratura.
Hoje, o benefício só é pago em casos excepcionais – quando o juiz atua fora da comarca para a qual foi aprovado em concurso, por exemplo. O valor continua sendo de R$ 4,3 mil.
No Congresso Nacional, o pagamento se destina a deputados e senadores que não querem ou não conseguem usar os apartamentos funcionais em Brasília, mantidos pelo Congresso. A Câmara, por exemplo, dispõe de 432 apartamentos para os 513 deputados – e os que não usam a estrutura da Casa recebem R$ 4,2 mil de auxílio. No Senado, a regra aplicada é a mesma, mas o valor do auxílio é maior: R$ 5,5 mil mensais. Mesmo assim, só 6 dos 81 senadores optam por receber em dinheiro, ao invés de usar os apartamentos funcionais.
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