“Quem descobriu isso foram vocês, eu não sabia”, disse Antonio Feitoza ao telefone. O então candidato a vereador em Santana de Parnaíba (SP) acabava de ser informado pela reportagem de que, para a disputa deste ano, havia sido registrado como branco na Justiça Eleitoral.
“Na verdade eu sou negro, sou bem escuro”, disse o petista que, em 2016, constava como pardo.
As fichas de participação para as eleições de 2020 mostram que 42 mil candidatos declararam uma cor diferente da registrada em 2016. Em um universo de quase 158 mil que concorreram nessas duas disputas, o número corresponde a 27%.
O percentual é alto, mas o fenômeno de candidatos alterando a declaração de cor de uma eleição para a outra não é novo.
A reportagem ouviu outros 35 candidatos de diferentes estados nessa situação. A maioria disse que desconhecia a mudança da cor da pele e culpou integrantes da campanha pela imprecisão no registro, indicando negligência dos partidos em relação à autodeclaração.
“Foi um erro do partido”, “não acompanhei o registro da candidatura”, “é o partido que põe” e variantes das frases foi o que a reportagem mais escutou ao telefonar para os candidatos e perguntar sobre a mudança de cor no registro eleitoral.
Esse histórico de mudanças em diferentes eleições e a aparente displicência dos partidos com o preenchimento das fichas dos candidatos indica que o fenômeno de mudança da cor da pele à Justiça Eleitoral está desvinculado da criação de cotas raciais para acesso ao fundo partidário —determinada pelo Supremo em setembro, a menos de dois meses do primeiro turno.
No caso de Feitoza, após o telefonema da reportagem, o candidato a vereador em Santana de Parnaíba disse ter conversado com a coordenadora de campanha, que declarou a sua cor, para apontar o erro. “Eu me incomodei porque eu prefiro assumir a minha cor”.
Ele já participou de três eleições, duas pelo PT e uma pelo PV, e afirmou ter notado essa negligência com a autodeclaração em ambas as siglas. Ele não foi eleito neste ano.
Em 2020, a mudança de cor atingiu 27% dos candidatos. Nos outros anos, o percentual de mudança no registro é quase o mesmo: considerando os pleitos de 2014, 2016 e 2018, variam de 26% a 28%.
O valor absoluto, contudo, é menor: há menos candidatos nas eleições gerais que nas municipais, e o número dos que concorrem em dois pleitos é consideravelmente menor (não chega a 10 mil).
Não é possível fazer uma comparação com outra eleição municipal, como a de 2012, porque o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) começou a registrar a cor autodeclarada a partir de 2014.
A mudança mais comum é da cor branca para parda. Em seguida, vêm os que se declararam pardos e passaram a se identificar como brancos. As proporções são parecidas: variam de 35% a 40% no primeiro caso e de 31% a 34% no segundo.
Há ainda 656 candidatos que mudaram a cor declarada de 2016 para 2018 e, em 2020, alteraram mais uma vez. Eles são 14% dos 4.652 que se candidataram em todas as três disputas.
Os erros nos preenchimentos das fichas são observados em outros campos também, mas são mais raros: alterações de sexo, CPF ou data de nascimento ocorrem com menos de 5% dos candidatos.
Leandro Ribeiro, que concorreu a um cargo de vereador pelo PSL em Mirassol, interior de São Paulo, também foi declarado pardo em 2016 e branco neste ano. Ele alega desorganização no seu partido anterior, o então PT do B e atual Avante.
Ribeiro ficou em dúvida quando a reportagem perguntou sobre a sua autodeclaração, mas por fim se definiu branco, como consta em seu registro de candidatura. O candidato também não conseguiu uma cadeira na Câmara Municipal da cidade.
Identificado como branco em 2016, Ivanei Oliveira dos Reis foi registrado como preto neste ano, também por um erro na administração do PSOL, partido pelo qual concorreu a vereador em Vinhedo.
“Eu não me declarei como branco [em 2016], não me consultaram”, diz o psolista, que não conseguiu uma cadeira na Câmara.
Não é possível atrelar o fenômeno a nenhuma sigla. Dos 35 candidatos com que a reportagem falou, apenas quatro afirmam que refletiram e conscientemente mudaram a autodeclaração.
É o caso de Marcos Mendes, que tentou a continuidade de seu mandato como vereador pelo PSOL em Salvador. “Me considero pardo. Mas refleti e optei por colocar branco desta vez para evitar problema. Não quero que digam que estou me aproveitando”, afirma o vereador, que não foi reeleito.
Heitor Freire, que tentou a Prefeitura de Fortaleza pelo PSL, também quis evitar confusões. “Tenho origem miscigenada, mas coloquei branco para evitar qualquer questionamento. Foi uma decisão que tomei de maneira muito leve, sem levar em conta nenhuma questão ideológica”, diz Freire, que terminou em 7º lugar no primeiro turno, com 1,66% dos votos.
Então candidato à vereador de Curitiba pelo PTC, Orlando Andrade também foi informado pela reportagem sobre a mudança —da cor preta para a branca— e levantou uma hipótese: “A primeira vez [em 2016] foi feito como negro, eu sou negro. Só se está havendo problema por causa da cota”.
A desconfiança de Andrade parece não ter respaldo nos dados, que apresentam pouca variação em relação a outras eleições.
?Entidades do movimento negro tem defendido a implantação de mecanismos de fiscalização para evitar possíveis fraudes.
O resultado das eleições mostra que o total de vereadores negros eleitos subiu de 42%, em 2016, ano das últimas eleições municipais, para 45% em 2020. Brancos caíram de 57% para 53,5%.
Houve uma diminuição da diferença, mas que ainda não reflete a composição da população brasileira, na qual pretos e pardos somam 56%.
Juarez Xavier, professor do curso de jornalismo da Unesp de Bauru e presidente da Comissão Central de Averiguação da universidade que analisa eventuais fraudes da política de cotas, diz não se surpreender com os números.
“Era esperado, lamentavelmente, porque não se tem um debate consistente sobre as questões étnico-raciais no Brasil.”
?Xavier afirma que o ideal seria ter uma comissão de averiguação das autodeclarações, como são feitas para as políticas de cotas no serviço público e nas universidades. “A autodeclaração, para efeito da política pública, só pode ser efetivada se ela tiver uma heteroidentificação.”
Sem isso, explica, seria difícil identificar se a natureza do erro é ignorância, fraude ou negligência.
“Os critérios já foram definidos pelo STF. Não é só autodeclaração, precisa ter uma heteroidentificação, e os critérios são textura de cabelo, aspectos fisionômicos negroides e cor da pele. Não isoladamente, mas o conjunto dessas características.”
A reportagem pediu ao TSE um balanço de quantos candidatos haviam solicitado retificação do registro de cor neste ano por erro de preenchimento na ficha, mas o órgão disse que não tinha esse levantamento.
O tribunal afirmou que a declaração de cor e raça dos candidatos é autodeclaratória e é feita durante o pedido de registro de candidatura nos cartórios eleitorais.
Bahia Notícias