Não é de hoje que observamos que a população brasileira está cada vez mais gorda – o índice de obesos cresceu 42% em uma década (entre 2007 e 2017), segundo os dados mais recentes do Ministério da Saúde, enquanto o índice de fumantes caiu 40% no mesmo período.
Entre as razões apontadas por pesquisadores para o aumento da obesidade estão o excesso de consumo de açúcar, especialmente aquele adicionado às bebidas açucaradas e aos produtos ultraprocessados, cada vez mais presentes na mesa dos brasileiros. São alimentos que contêm mais sal, mais açúcar, mais gordura, além de uma série de aditivos e conservantes que ninguém sabe precisamente o real efeito sobre a saúde.
Um estudo divulgado no último dia 11 na revista científica British Medical Journal afirma que o consumo de bebidas açucaradas como refrigerantes e sucos adoçados artificialmente está associado a um risco maior de desenvolvimento de certos tipos de câncer, como o de mama, próstata e intestino.
O estudo foi conduzido por pesquisadores franceses que avaliaram o comportamento de mais de 100 mil adultos e descobriram que quem ingere apenas 100 ml de bebidas açucaradas por dia tem um risco 18% maior de ter câncer.
Além disso, há diversos problemas de saúde crônicos associados ao aumento da obesidade, especialmente a hipertensão arterial e o diabetes, até pouco tempo consideradas doenças exclusivas de adultos. Estima-se que, por causa desses problemas, uma geração inteira de crianças viverá pior do que os seus pais, acendendo o alerta vermelho para pesquisadores, instituições e governo.
Afinal, está na hora de tratarmos o açúcar como tratamos o tabaco?
Cerco às bebidas açucaradas
A BBC News Brasil ouviu nutricionistas, representantes de entidades de defesa do consumidor, pesquisadores, Ministério da Saúde, Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a indústria de alimentos e bebidas para discutir os malefícios do açúcar para a saúde e o que está sendo feito em saúde pública para minimizar esses danos.
A conclusão é que a preocupação com o excesso de consumo existe, tanto por parte das entidades de defesa do consumidor, que sugerem medidas mais duras, como o fim da publicidade voltada para o público infantil e alertas nos rótulos dos alimentos; quanto por parte do governo, que admite o problema e destaca como medida a assinatura de um acordo com a indústria para a redução da quantidade de açúcar nos alimentos industrializados.
Mas, para entidades e pesquisadores, isso ainda é muito pouco e o país está longe de ter uma medida realmente efetiva em saúde pública contra o açúcar.
“Com relação ao açúcar, nós estamos a quilômetros de distância do sucesso da campanha contra o tabagismo, que foi uma das campanhas de saúde pública de maior sucesso no país. E nenhum país ainda conseguiu reverter ou estagnar o índice crescente de obesidade”, disse a nutricionista Maria Laura da Costa Louzada, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo (USP), e professora do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Para pesquisadores e entidades de defesa do consumidor, o primeiro passo para lidar com o problema de maneira eficaz seria alterar a rotulagem dos alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas adicionando um símbolo de alerta indicando alto teor de açúcar, de sódio ou gordura na parte frontal da embalagem.
Depois, defendem tributar a produção de bebidas açucaradas, que no Brasil tem subsídio do governo: nos últimos dias o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou um decreto ampliando de 8% para 10% o benefício fiscal do IPI (Imposto Sobre Produtos Industrializados) para a fabricação de concentrados de refrigerantes. “Estamos na contramão dos países desenvolvidos. Cerca de 40 países tributam as bebidas e aqui concedemos isenções e créditos fiscais. O caminho do subsídio é um grande problema a ser enfrentado”, avalia a nutricionista Ana Paula Bortoletto, líder do Programa de Alimentação Saudável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
Ultraprocessados
Entre os exemplos de alimentos ultraprocessados estão pães de forma, iogurtes prontos, sucos de caixinha, macarrão instantâneo, barras de cereais, gelatinas e até o aparentemente inofensivo peito de peru. São alimentos cada vez mais consumidos pelos brasileiros – pela facilidade de acesso e pelo baixo preço – mas são ricos em calorias, sal, açúcar, gordura, além de uma série de aditivos e conservantes que ninguém sabe de fato o real efeito sobre a saúde. As bebidas açucaradas incluem refrigerantes, néctares (sucos de caixinha), sucos em pó e outras bebidas adoçadas.
Trata-se de uma classificação “nova” da tabela de alimentos, que passou a ser considerada apenas em 2014 com a publicação da segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, e a adoção do sistema de classificação alimentar NOVA, elaborado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da USP.
Segundo a nutricionista Maria Laura Louzada, pesquisadora do Nupens e professora da Unifesp, a alteração ocorreu depois que pesquisadores perceberam, por meio da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que a população comprava cada vez menos açúcar refinado, sal e óleo, mas continuavam engordando.
Ao mesmo tempo, havia cada vez mais industrializados à mesa. “Nos demos conta de que o problema não era exatamente o açúcar que adicionamos ao cafezinho, mas sim o açúcar presente nos outros alimentos”, explicou.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o quarto maior consumidor de açúcar no mundo (12 milhões de toneladas/ano), atrás apenas da Índia, da União Europeia e da China. Ainda segundo a entidade, o brasileiros consomem 50% a mais de açúcar do que o recomendado. Isso significa que, por dia, cada brasileiro, consome, em média, 18 colheres de chá do produto (o que corresponde a 80g de açúcar/dia), quando o recomendado pela OMS seria até 12 colheres.
O consumo excessivo de açúcar causa, entre outros problemas, danos ao fígado, que armazena glicose (um tipo de açúcar) e, em excesso, se transforma em gordura; danos ao pâncreas, responsável pela liberação da insulina (que auxilia na entrada de glicose nas células); aumento do aparecimento de cáries nos dentes; além do excesso de peso que pode evoluir para obesidade, pressão alta, diabetes e outras complicações. “Enquanto países do hemisfério Norte já consomem 80% de alimentos ultraprocessados, nós ainda consumimos em torno de 30%. É possível reverter isso, mas ainda falta muita informação”, avalia Bortoletto, do Programa de Alimentação Saudável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
Debate sobre alteração dos rótulos
Para tentar frear a epidemia de obesidade e o aumento da ingestão de produtos ultraprocessados, pesquisadores e entidades de defesa do consumidor sugerem a alteração na rotulagem dos alimentos, incluindo símbolos na parte da frente da embalagem alertando para o alto teor de açúcar, sódio e gordura, a exemplo do que já está sendo feito no Chile e no Canadá. Hoje, os rótulos não são obrigados a informar a quantidade de determinado nutriente, apenas que ele está presente na composição.
Na avaliação da engenheira de alimentos Rosires Deliza, pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos, se o consumidor souber o que está de fato consumindo, ele poderá buscar comprar o alimento que ele considerar mais saudável. “É muito difícil traduzir um rótulo da forma como é feito hoje. A ordem que os ingredientes aparecem indica qual deles está em maior quantidade. O açúcar, em geral, é o primeiro da lista. Mas ninguém é obrigado a saber isso”, afirma Deliza.
Para descobrir se o consumidor conseguia identificar alimentos saudáveis e não saudáveis por meio da embalagem, Deliza e uma equipe de pesquisadores da Embrapa avaliaram a eficácia da rotulagem atual, chamada GDA (referência de ingestão diária em relação a uma dieta adulta padrão), com outros seis modelos de rótulos, incluindo o semáforo nutricional (de colocar alertas em cores verde, vermelha e amarela) e cinco símbolos de alerta: octógono preto, triângulo preto, círculo vermelho, lupa vermelha e lupa preta.
“Constatamos que o modelo atual, o GDA, foi o que as pessoas tiveram mais dificuldades de indicar os alimentos saudáveis por serem rótulos confusos. Com o semáforo, gerou confusão, pois uma mesma embalagem podia ter cor vermelha por ser alta em sódio, mas também a cor verde por ter pouco açúcar. Entre os alertas, o octógono preto foi o símbolo que as pessoas identificaram mais rápido, como sendo algo prejudicial”, explicou a pesquisadora.
Com base nesses dados, as entidades propõem mudanças nas rotulagens. O assunto está em discussão na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) há mais de um ano e a previsão é que uma consulta pública seja disponibilizada para a população opinar sobre o tema em setembro deste ano. Em nota, a Anvisa informou que a norma vigente sobre rotulagem nutricional é de 2003 e, apesar dos avanços, ainda há dificuldades de utilização dessa rotulagem pelos consumidores brasileiros.
“A principal razão para intervenção regulatória da Anvisa é garantir aos consumidores o acesso às principais informações sobre os alimentos, de forma simples, padronizada, precisa e compreensível, evitando práticas enganosas e contribuindo para a promoção da saúde”, informou a agência, em nota. A Anvisa informou ainda que uma das principais alternativas regulatórias será, sim, o uso da rotulagem nutricional frontal com a divulgação de nutrientes considerados críticos à saúde, entre eles o açúcar.
As entidades também defendem o fim da publicidade voltada para o público infantil, associando personagens e bichinhos aos alimentos considerados não saudáveis, além do aumento da tributação das bebidas açucaradas – no Brasil, elas são fabricadas na Zona Franca de Manaus, com isenção de impostos.
Acordo com a indústria
O Ministério da Saúde admite o problema e afirmou, em nota oficial, que a prevenção da obesidade e das doenças crônicas não transmissíveis é uma das prioridades do governo. Como exemplo, cita que fez acordo com a indústria de alimentos e assumiu a meta de reduzir 144 mil toneladas de açúcar até 2022, em cinco categorias de alimentos: mistura para bolos, produtos lácteos, achocolatados, bebidas açucaradas e biscoito recheados.
“Ao estabelecer a meta até 2022, o Brasil se destaca como um dos primeiros países do mundo a buscar a diminuição do açúcar nos alimentos processados e ultraprocessados. A meta foi estabelecida por meio de um Termo de Compromisso assinado entre o Ministério da Saúde e associações representativas do setor produtivo brasileiro”, diz a nota. O acordo é similar ao pacto firmado em 2011 para a redução de sódio nos alimentos, eliminando mais de 17 mil toneladas de sódio em quatro anos.
Segundo o ministério, as associações Abia (Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação); Abimapi (Associação Brasileira da Indústria de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados), Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas) e Viva Lácteos (Associação da Indústria de Lácteos) comprometeram-se com essa meta de forma voluntária.
Para pesquisadores da área, esses acordos são pouco efetivos, pois além de serem voluntários, possuem metas muito baixas.
O governo afirmou também que, no ano passado, o país assumiu o compromisso de deter o crescimento da obesidade na população adulta por meio de políticas de saúde e segurança alimentar e nutricional; como reduzir o consumo regular de refrigerante e suco artificial em pelo menos 30% na população adulta e ampliar em no mínimo de 17,8% o percentual de adultos que consomem frutas e hortaliças regularmente.
“Para qualquer mudança precisa haver uma parceria muito grande entre governo, entidades, indústria. Não adianta nada fazermos estudos, chegarmos ao resultado e não ser colocado em prática. O Chile implementou de maneira pioneira a mudança nos rótulos faz dois anos. Estamos todos querendo saber os resultados”, avaliou Deliza, pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
Em nota, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes (Abir) informaram ter consciência de sua responsabilidade em contribuir com bem-estar de seus consumidores, produzindo alimentos saudáveis e seguros. “Em relação à redução do açúcar, 68 empresas associadas assinaram o termo de compromisso [com o Ministério da Saúde]. Juntas, representam 87% do mercado nacional de alimentos e bebidas”, diz a nota.
A indústria de alimentos e bebidas informou ainda que apoia a mudança nos rótulos e que está contribuindo com a Anvisa. “A Rede Rotulagem, formada por 20 entidades ligadas ao setor, defende que sejam utilizados rótulos informativos com todos os dados para que o consumidor tenha liberdade de escolha. Entende que os modelos de advertência não são democráticos e comprometem a percepção do consumidor. São propostas alarmistas sem o objetivo de informar e, tampouco, auxiliar as pessoas”, afirma o comunicado.
Com relação à publicidade dirigida ao público infantil, a Abia informou que possui um acordo de apenas anunciar produtos para crianças menores de 12 anos de idade que atendam aos critérios nutricionais comuns ou não anunciar produtos para menores de 12 anos. E com relação à sugestão de taxar as bebidas açucaradas, a Abir informou que “não há nenhum estudo que comprove a eficácia desta medida no combate à obesidade, doença multifatorial. Focar em refrigerantes também seria ineficaz. Dados da Vigitel/Ministério da Saúde constataram uma queda de 40% no consumo de refrigerantes na última década.”
Já a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) informou, em nota, que “rechaça todas as pretensões de controlar o consumo de açúcar por vias regulatórias”. Acrescenta que “é comprovado que a maior parte do consumo de açúcar do país provém da adição feita no preparo final dos alimentos”. A Unica disse ainda ser a favor do debate de ideias e da busca de soluções que garantam a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.
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