Um estudo realizado por uma equipe da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), da Bahia, revela que animais e o meio ambiente ao longo da bacia do rio Doce estão contaminados com altos níveis de metais pesados — como ferro, bário e níquel, entre outros — após o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana (MG).
Realizada entre setembro e dezembro do ano passado, a pesquisa, obtida com exclusividade pelo R7, focou nas populações de girinos ao longo de seis cidades no Espírito Santo e duas em Minas Gerais. “Girinos são ótimos indicadores da situação do meio ambiente, sobretudo da água, por causa das suas peles permeáveis e extremamente sensíveis”, explica Fabiana Alves, coordenadora da campanha de água do Greenpeace.
Os dados coletados com a observação de 1.500 girinos de 24 espécies revelam que mesmo pontos de amostra que não tiveram contato com a lama da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, também apresentaram animais e águas contaminados. “Isso pode ser explicado pela contaminação através do lençol freático. Passados pouco menos de um ano de quando houve o rompimento, a contaminação pode ter se expandido além dos limites da lama”, relatam os pesquisadores.
“Com exceção do zinco, todos os pontos tiveram os metais em concentrações extremamente mais altos que o permitido pela resolução do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente)”, conta Flora Acuña, professora da UEFS e coordenadora do projeto. Já nos girinos, as concentrações de todos os metais foram altas nos locais estudados.
Um estudo da UFRJ divulgado em abril deste ano já havia mostrado que a água de poços artesianos da região está contaminada com ferro e manganês, o que vem prejudicando as lavouras entre Minas Gerais e Espírito Santo. João Paulo Torres, chefe do programa de biofísica ambiental da UFRJ e coordenador do estudo, afirma que os metais no solo agridem as lavouras. Em algumas comunidades já não havia mais moradores. Todos abandonaram as comunidades. “Muitas lavouras até germinavam, mas as folhas se queimavam e morriam ao tocar o solo contaminado por metais “altamente oxidantes””, conta.
Flora Juncá, pesquisadora da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) e coordenadora da pesquisa afirma que o estudo expõe a contaminação da bacia do rio Doce e que isso pode ter consequências no futuro.
— Nosso estudo demonstra com toda clareza alta contaminação. OS girinos mostraram níveis muito altos de metais em todos os pontos de coleta. Não sabemos quantos alcançarão a idade adulta e, quando adultos, se conseguirão se reproduzir com a mesma eficiência. Ainda, esses girinos farão parte na cadeia alimentar de vários outros animais, o que impactará a fauna silvestre sobrevivente.
O relatório aponta que o ferro, visto como pouco nocivo a seres humanos e presente em altas quantidades nos rejeitos de mineração, acabou atraindo os metais tóxicos. “Esse espalhamento do rejeito enriquecido com ferro possibilita o aumento na concentração, no ambiente, de outros elementos químicos com afinidade pelo ferro, como manganês, níquel e chumbo, com potenciais toxicológicos conhecidos”, afirma o texto.
Contaminação em humanos
Em 5 de novembro de 2015, cerca de 40 bilhões de litros de lama contaminada com rejeitos da mineração de ferro foram lançados no meio ambiente após o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco – mineradora controlada pela Vale e pela australiana BHP Billiton. O ‘tsunami de lama’ arrasou o distrito de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Ponte do Gama e Gesteira, entre os municípios mineiros de Mariana e Barra Longa.
Desceu pela calha do rio Gualaxo do Norte, a lama atingiu até 40 metros de altura em pontos mais estreitos, chegando ao rio do Carmo, onde subiu rio acima, e perdeu força. Mais adiante o rio do Carmo se une ao Piranga formando o rio Doce, que conduziu a lama diluída e seus contaminantes até o oceano Atlântico, percorrendo pelo caminho cerca de 600 km.
A Fundação Renova, criada pela Samarco para reparar os danos causados pela tragédia, conforme exigido pelo Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o MP (Ministério Público), tem feito a recuperação das áreas onde o rejeito foi acumulado através do plantio de plantas de rápido crescimento, chamadas de ‘adubo verde’. O ecólogo Dante Pavan, colaborador do estudo, critica a iniciativa.
— Eu vejo aquele rejeito de modo similar a um derramamento de petróleo. Ele tem características físicas e químicas completamente diferentes do ambiente, prejudicando muito a região. A Renova deveria remover aquela lama de qualquer jeito.
Flora, no entanto, questiona a retirada. “É tóxico, mas vai retirar e colocar onde”?
O temor do Greenpeace agora é que esta contaminação na fauna e flora ao longo da bacia do rio Doce chegue a animais maiores e mesmo aos humanos, uma vez que metais pesados se acumulam ao longo da cadeia alimentar e não são eliminados pelo organismo.
Flora Acuña é cuidadosa ao tratar do risco. “Baseado neste estudo não podemos garantir a contaminação humana, mas não podemos fugir da realidade. A contaminação das águas está lá, peixes estão lá e são parte da cadeia alimentar. Não podemos certificar, mas há todos os indícios de que pessoas estão sendo contaminadas”.
Para a professora, o estudo é importante pois levanta outras questões que precisam ser acompanhadas mais proximamente, como a contaminação do lençol freático e plantas na região.
“A Fundação Renova precisa fazer o monitoramento desses metais pesados tanto no ambiente quanto na população, e isso precisa ser feito a longo prazo”, defende a coordenadora Fabiana, que comenta:
— O problema da contaminação por metais é que a maioria das pessoas só vai ter sintomas daqui a 15, 20 anos.
Metais se acumulam no corpo ao longo da vida, e podem ser perigosos quando em excesso. A contaminação por manganês, por exemplo, pode provocar Distúrbios neurológicos, como Mal de Parkinson. Já o cromo, outro elemento encontrado em altas quantidades na pesquisa, pode provocar úlceras e câncer de pulmão. Um dos mais agressivos, o chumbo se acumula nas articulações, que podem até ficar paralisadas. Os demais metais citados na pesquisa também podem afetar os sistemas digestivo e nervoso.
A Fundação Renova, criada pela Samarco para reparar os danos causados pela tragédia, conforme exigido pelo Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o MP (Ministério Público) afirmou, através de sua assessoria, “que considera fundamentais as pesquisas que ajudem a mapear os impactos dos rejeitos e auxiliem na definição das medidas de reparação em andamento. Mas até o momento não teve acesso ao estudo do Greenpeace”.
Ainda segundo a nota, “a Renova realiza monitoramento sistemático em vários pontos ao longo do Rio Doce, e um dos resultados já aponta que a água retornou a níveis semelhantes aos existentes antes do rompimento da barragem. Para avaliar os impactos, um monitoramento específico de biodiversidade aquática foi iniciado em abril no Rio Doce, em cerca de 40 pontos do Rio Doce. Na região costeira, esse mesmo trabalho começará neste semestre. O estudo vai avaliar a contaminação de girinos e também de insetos e microrganismos aquáticos (plânctons) a peixes, sem deixar de lado moluscos e crustáceos. No caso específico dos anfíbios, serão feitas análises tanto das larvas quanto das populações adultas. Com isso, será possível a avaliação de toxicidade tanto da fase aquática quanto na terrestre. No mesmo monitoramento, será feita a avaliação dos pescados. Os resultados devem indicar se estão ou não aptos para o consumo. Mas vale lembrar que a liberação da pesca nas regiões atingidas por rejeitos é de competência de órgãos ambientais e sanitários”.
A Renova ainda aponta que para o monitoramento das tartarugas marinhas, a Renova acaba de celebrar um contrato com a Fundação Pró-Tamar. Ao todo, serão monitorados 156 km da costa do Espírito Santo, onde está localizada a foz do Rio Doce.
O ecólogo Pavan questiona a demora da Samarco/Renova em começar a fazer este monitoramento, após quase dois anos do rompimento de Fundão. Ele afirma também que este estudo ainda é muito limitado, contando com a coleta apenas de 25 pontos. Para ele, acompanhamento semelhante da contaminação por metais deve ser extenso, levados adiante tanto pelos governos quanto pela mineradora.
Menos diversidade
A pesquisa revelou também que os pontos de coleta que tiveram contato direto com a lama de rejeitos apresentaram uma riqueza de espécies menor que os demais locais.
O Ibama registra na região pesquisada 28 espécies de anuros [ordem de animais que inclui sapos e rãs] de sete famílias. O número de espécies coletados em cada ponto de amostra variou de um a sete. O que se observou foi que aqueles pontos contaminados pela lama tiveram uma diversidade menor de espécies.
O estudo destaca o ocorrido com uma espécie de rã que vive enterrado no solo, saindo apenas para se alimentar e se reproduzir: “Todas as poças sem contato direto com o rejeito apresentaram girinos de Elachistocleis cesarii, indicando que o período de coleta foi mais ou menos coincidente com período reprodutivo da espécie. Nenhuma poça que teve contato direto com o rejeito, entretanto, mostrou a presença de girinos desta espécie”, relatam os pesquisadores.
OS pesquisadores especulam que “provavelmente as populações adultas que se encontravam no trajeto da lama foram prejudicadas, o que afetou a reprodução neste ano”.
Além disso, alguns poluentes podem induzir deformidades nos girinos, como a redução das estruturas orais usadas na alimentação dos animais. Como essas deformidades podem atingir até 96% dos indivíduos de algumas espécies, o crescimento natural dessas espécies fica comprometida.
Febre Amarela
Para a coordenadora do estudo, é precipitado associar a tragédia de Fundão com o recente surto de febre amarela em Minas Gerais, que causaram pelo menos 159 mortes até 26 de junho deste ano, entre 1.147 notificações da doença (446 destes foram confirmados, segundo a Secretaria Estadual de Saúde de MG.
— Sabemos que os anuros [família dos sapos e rãs] se alimentam de mosquitos. Os girinos de algumas espécies também se alimentam de larvas de mosquitos. Então realmente há menos inimigos do mosquito vetor da febre amarela. No entanto, há outros predadores, e falar que há uma relação entre isso e o surto da doença é muito precipitado; é uma equação de muitas variáveis.
Flora Juncá destaca a importância de fazer o acompanhamento das condições do meio ambiente da região, inclusive para comprovar ou desmentir a ligação com a doença.
— Todo o sistema ecológico da região afetada pelo rejeito está ameaçado pela contaminação de metais. É imperativo um monitoramento ecológico sério e a longo prazo destas áreas. Se a perda de anfíbios foi um dos fatores para a epidemia da febre amarela, a situação não deve melhorar só porque a vegetação cresceu em cima da lama de rejeito.
R7