Todos os anos, 2.715 crianças morrem nos Estados Unidos em decorrência de armas de fogo. É a segunda maior causa de morte na faixa etária – atrás de acidentes e à frente da soma entre os casos de câncer e problemas cardíacos.
Estudos que devem ser apresentados neste mês em evento da American Academy of Pediatrics, em Orlando, Flórida, vão mostrar que os casos de morte de crianças pelo uso de armas de fogo – corrigidas discrepâncias populacionais, econômicas e sociais – ocorrem duas vezes mais em Estados com legislação mais flexível do que em Estados em que o porte de arma é mais restritivo.
“Nossa principal conclusão é que os Estados com uma legislação mais rígida sobre armas de fogo tiveram menos crianças que morreram por armas de fogo. E as leis que mantêm especificamente as armas fora do alcance crianças também resultaram em menos mortes em geral entre as crianças, principalmente suicídios”, afirmou à BBC News Brasil a médica traumatologista Stephanie Chao, professora e pesquisadora do hospital infantil da Escola de Medicina de Stanford.
“Nossa pesquisa e pesquisas em geral mostram consistentemente que, quando as crianças têm mais acesso a armas de fogo, há taxas mais altas de lesões e morte”, frisou.
“Ações e leis que mantêm as armas longe das crianças, particularmente dentro das casas, estão correlacionadas a menos mortes.”
Três pesquisas que serão apresentadas no congresso pediátrico abordaram a questão das armas de fogo. Duas delas, complementares, partiram justamente da hipótese de que haveria uma variação entre o número de lesões infantis causadas por armas conforme as facilidades ou restrições de legislação – nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, são regras estaduais que definem a questão.
O tema da posse e do porte de arma vem sendo discutido nos dois países. Uma das propostas de campanha do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), reforçada nos últimos dias, era revisar o Estatuto do Desarmamento para facilitar a compra de armamento pela população civil.
Crianças hospitalizadas
Um dos estudos analisou todas as admissões hospitalares do país em 2012 e cruzou os dados com o índice Brady, que avalia o rigor da lei de armas por Estado – trata-se de um valor calculado a partir de características que vão da limitação quantitativa à compra de munições a permissão ou não da compra da arma, especificamente.
No ano analisado, 6.941 crianças e adolescentes foram hospitalizados em decorrência de armas de fogo nos Estados Unidos. Desses, 36% dos casos ocorreram em estados da região Sul, onde as leis são mais flexíveis para o assunto, 22% no Oeste, 25% no Centro-Oeste e 17% no Nordeste.
Quando os pesquisadores aplicaram os ajustes matemáticos e estatísticos para compensar outras variáveis – condições de renda, tamanho da população, nível de escolaridade e taxas de desemprego -, chegaram à conclusão que, em Estados menos restritivos, ocorrem proporcionalmente o dobro de mortes infantis por causa de armas de fogo.
Crianças do sexo masculino, de baixa renda e aquelas de famílias negras ou hispânicas são desproporcionalmente mais afetadas.
“Lesões relacionadas com armas de fogo são a segunda maior causa de morte entre crianças nos Estados Unidos, mas encontramos uma clara discrepância no local onde essas mortes acontecem, o que corresponde à força da legislação estadual sobre armas de fogo”, disse Chao. “A cada ano, mais crianças morrem de lesões relacionadas a armas de fogo do que de câncer e doenças cardíacas combinadas.”
A médica ressalta que “todas e cada uma dessas mortes” seriam evitáveis. “Nosso estudo demonstra que a legislação pode impedir que crianças morram por causa de armas”, conclui.
Para o médico pediatra Jordan Taylor, coautor do estudo, uma melhor compreensão das diferenças regionais nas ocorrências de casos com armas de fogo pode ajudar nos esforços de prevenção de cada lugar – bem como provocar debate acerca das políticas públicas.
Da média anual de 2.715 mortes de crianças por armas de fogo nos Estados Unidos, 62,1% dos casos são de homicídios e 31,4% de suicídios – muitas vezes involuntários.
Outro estudo que vai ser apresentado no mesmo congresso pediátrico nos Estados no início deste mês mostra que crianças e adolescentes têm dificuldade em distinguir uma arma de fogo verdadeira de uma de brinquedo – o que pode aumentar ainda mais o risco de acidentes.
Quando expostas a duas armas lado a lado, uma verdadeira e outra de brinquedo, 41% das crianças e adolescentes de 7 a 17 anos tiveram dificuldades de discernir entre uma e outra. Foram entrevistadas 297 crianças e seus respectivos responsáveis, todas na região sudeste dos Estados Unidos, ao longo de três meses em 2017.
“Uma das descobertas mais dramáticas foi a facilidade com que as crianças podem confundir armas reais com as armas de brinquedo realistas de hoje”, afirma a pediatra Kiesha Fraser Doh, professora e pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade Emory.
Dos participantes da pesquisa, 25% tinham pelo menos uma arma de fogo em casa. Estes eram mais propensos a permitir que seus filhos tivessem armas de brinquedo – 51% responderam que sim, contra 26% dos adultos que não possuíam armas.
Os pesquisadores perguntaram aos pais se eles achavam que seus filhos eram capazes de conseguir uma arma de verdade. Apenas 5% disseram acreditar que isso pudesse acontecer dentro de 24h. Entretanto, quando as crianças e adolescentes foram submetidas ao mesmo questionamento, 14% dos filhos de pais com arma garantiram que conseguiriam – e 4% dos filhos de pais sem arma.
Dos proprietários de armas de fogo, apenas 34% disseram armazená-la conforme recomendações da American Academy of Pediatrics – ou seja: fechada, descarregada e separada da munição. Crianças que vivem em casas onde há pelo menos uma arma revelaram, em 53% dos casos, que sabiam onde ela ficava guardada – e 45% delas sabiam também onde estava a munição.
“Especialmente considerando que os proprietários de armas pesquisados tinham quase duas vezes mais chances do que os donos de armas de fogo de deixar seus filhos brincar com armas de brinquedo, o armazenamento seguro de armas de fogo em casas onde as crianças brincam é crítico”, avalia Doh.
R7