Ocupando bibliotecas, praças, espaços culturais e escolas, o 8º Festival do Livro e da Literatura de São Miguel traz atividades par mais de 50 pontos da zona leste de São Paulo. A partir do tema “Letras Pretas: poéticas de corpo e liberdade”, a mostra vai discutir o racismo e a equidade racial na produção literária com debates, apresentações musicais, histórias e teatro. A programação começa hoje (8) e vai até sexta-feira (10).
O eixo condutor das atividades segue uma construção elaborada nas últimas duas edições do festival, como explica o coordenador da programação cultural da Fundação Tide Setubal, Inácio Pereira.
Segundo ele, com a crise política de 2015, foi feita a opção de se discutir democracia e história na perspectiva de diferentes vozes. No ano passado, a programação passou pelas discussões de gênero, e, agora, pelas de raça. “É a questão do povo negro, da identidade da produção literária, refletindo sobre a essência da literatura negra e periférica”, disse.
A fundação organiza o evento, que começou como uma feira do livro e se expandiu, em boa parte, por conta da aproximação com as escolas da região. “É um festival do livro construído de forma colaborativa a partir de uma rede de vários atores locais”, afirmou Pereira.
“As escolas entraram no festival como público em um primeiro momento, começaram a dialogar, depois quiseram participar com os seus projetos”, acrescentou sobre como alunos e professores foram se apropriando do evento.
Assim, os dias de festival se tornam, segundo o coordenador, um momento para que docentes e estudantes conheçam propostas geradas dentro da própria comunidade. “Existe uma troca de experiências das práticas de literatura e mediação dos projetos, somando essas temáticas que são transversais, questão de gênero, equidade racial, democracia, ocupação dos espaços públicos, direito à cidade”, observou.
Ocupando a rua e o simbólico
Para elaborar a programação, que também envolve artistas e grupos culturais que trabalham na perspectiva periférica, foi formado um grupo curatorial com artistas, educadores e ativistas. É pensado, desse modo, um festival que não só traga atrações de outros espaços, mas que a produção da comunidade e de fora ocupe a região de diversas formas. “A ideia não é só ocupar a praça, mas também ocupar o simbólico”, disse Pereira.
Como exemplo desse tipo de experimentação, o coordenador citou a releitura feita por um grupo de alunos da personagem Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, presente nas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo. “A Tia Nastácia dentro da lógica do Monteiro Lobato você não conhece a história da família dela, não sabe se foi casada, se teve netos. Ela uma figura acessória para contar a história de uma família branca”, explicou. Porém, os estudantes, em um esquete montado para o festival, criam um momento em que a cozinheira negra conta a própria história para a boneca Emília.
Mulheres negras
“A criança que assistir essa história, quando ela for ver de novo o Monteiro Lobato, com certeza aquela história que ela viu na praça verá com que ela veja Tia Nastácia de uma maneira diferente, humanizada, com família, com filhos, netos”, destaca sobre a importância das reflexões feitas pelos jovens.
A necessidade de recontar a história das mulheres negras, não só de uma perspectiva social e racial diferente, mas desconstruindo estereótipos de gênero tem fomentado diversos grupos culturais na periferia, segundo Débora Garcia, fundadora do Sarau das Pretas. “O nosso corpo sempre foi colocado à disposição do outro: essa coisa da maternidade, da ama de leite, da mulher hipersexualizada. Então, hoje, nós mulheres negras temos uma demanda muito forte de olharmos para nós mesmas”, ressaltou a ativista que também participou da curadoria do festival.
“Nós acreditamos que a literatura é um lugar de fala muito importante, porque historicamente nós não tivemos acesso à escrita formal, a nossa história, as nossas questões sempre foram trazidas pela oralidade”, disse ao lembrar que as mulheres negras ainda sofrem com a falta de escolaridade. “As mulheres negras ainda estão na base da pirâmide social, são as que têm a menor escolaridade, as que acessam aos piores salários e cargos de emprego”, completa.
Por isso, Débora defende a necessidade de narrativas construídas por outros autores e autoras, não somente os homens brancos de boa condição financeira, o que, de acordo com ela, tem sido a regra na literatura ocidental. “Quando nós vamos escrever um texto, nós colocamos mulheres que são complexas, que têm sonhos, que têm compreensão do seu lugar no mundo, não a ver navios. E isso muda tudo, porque nós criamos referências positivas”.
Agência Brasil