As lembranças à Santa Bárbara, que no sincretimo religioso é Iansã para o Candomblé, podem estar nas esculturas moldadas à sua imagem, na decoração de espaços religiosos ou até mesmo no nome de batismo e na pele, como tatuagem, de alguns devotos.
São várias as formas encontradas pelos fiéis para demonstrar a admiração tanto pela santa católica, quanto pelo orixá, cujo dia de devoção, tradição de mais de 300 anos, acontece nesta terça-feira (4), em Salvador.
Durante a festa, registrada como patrimônio imaterial da Bahia no livro das celebrações pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do estado e que marca a abertura do ciclo de festas de largo na capital baiana, os devotos participam de missa e, depois, “pintam” de vermelho e branco ruas do centro da cidade em procissão.
A cor vermelha é marcada nas vestimentas da santa lembrando o sangue derramado na sua morte; o branco representa a pureza, a sua virgindade.
O aderecista Rodrigo Guedes é um dos responsáveis pela decoração da igreja e também dos andores para a festa. Ele conta que a devoção por Santa Bárbara vem de infância.
“Desde criança, sou devoto. Vem da família, que também é devota de Santo Antônio. Hoje, junto com outro decorador, assumi a reponsabilidade da ornamentação da festa dela há cinco anos. Como já trabalho com a decoração de várias igrejas, fui indicado para essa missão. Isso para a gente é motivador. É emocionante ver a festa, ver as pessoas saindo da igreja com a santa nos braços”, lembra.
Em casa, fez a promessa de montar um altar próprio todo ano, com muita criatividade, para homenagear a santa.
“Isso é por causa de uma promessa que fiz. Uma vez fui impedido de levar a imagem de Santa Bárbara para uma igreja porque muitas pessoas criticaram devido ao sincretismo, e eu prometi que na minha casa ela, sempre teria espaço. Aí, eu separo um tempo e monto em casa, com muito vermelho, branco, dourado e flores” destacou.
Aniversariante
A estudante Bárbara Montenegro, de 24 anos, tem o mesmo nome da santa por ter nascido no dia em que se comemora a festa católica. Ela não esconde a ansiedade de participar pela primeira vez do evento religioso oficial no Centro Histórico, durante a manhã desta terça, em seu aniversário.
Ela conta que a sugestão para o nome foi da avó.
“Por eu ter nascido no mesmo dia da festa, minha avó insistiu com minha mãe para colocar o nome de Bárbara. Ela disse que seria bom e que isso traria proteção. E eu sinto isso. Sempre me senti protegida e acho uma coisa incrível ter nascido nesse dia”, afirma.
Bárbara conta que, apesar de a família ser católica, nunca foi de frequentar igreja, mas ao longo do tempo, foi criando interesse por conhecer mais a história de Santa Bárbara. Hoje, diz ser muito supersticiosa.
“Meu aniversário eu passo sempre de vermelho, assim como todas as quartas-feiras do ano. A primeira tatuagem que fiz foi em homeagem ao meu avô. Fiz uma espada que significa o ser guerreiro e que tem a ver com Santa Bárbara”.
Programação
Os festejos à Santa Bárbara têm início, às 8h desta terça-feira, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Pelourinho, onde acontece uma missa campal. Em seguida, uma procissão é realizada pelos fiéis, que seguem pelas ruas do Centro Antigo de Salvador, passando pela Praça da Sé e Terreiro de Jesus.
A multidão, animada, canta e dança até a Rua José Joaquim Seabra, na Baixa dos Sapateiros, com saudação no Quartel do Corpo de Bombeiros, corporação que tem a santa como padroeira. Ainda na Baixa dos Sapateiros, fazem o retorno, passam novamente pelo Pelourinho e voltam para a igreja.
Na procissão, a imagem de São Miguel também é carregada pelos fiéis e ocorre uma reverência em frente ao Mercado de São Miguel, que também fica na Baixa dos Sapateiros. A imagem fica no mercado, enquanto os fiéis seguem com a de Santa Bárbara e outros santos.
Esse dia de festa ainda inclui samba e caruru, após a procissão, organizados pelos fiéis.
Viagem pela fé
A professora Edna Maria Alves, de 54 anos, aguardava ansiosa pela festa desta terça. Devota desde pequena, afirma já ter pedido as contas de quantas celebrações em tribito à santa já participou. Todos os anos, ela sai do município de São Gonçalo dos Campos, onde mora, a cerca de 119 quilômetros de Salvador, para participar das homenagens
“Sou muito devota de Santa Bárbara. Sempre vou para Salvador três dias antes da festa, para também participar do tríduo na Igreja do Rosário. Esse amor pela santa veio de uma tia, que já morreu. Ela também era bem devota e eu disse pra mim mesma que também abraçaria essa causa”, diz.
Edna afirma já ter recebido várias graças da santa. “Foi um bocado já. Tinha dia de eu estar balançada igual um bambu, mas ela nunca me deixou cair e também nunca quebar. Já passei por duas cirurgias com a ajuda dela e, também, a minha mãe se curou de um câncer. Eu pedi a Santa Bárbara que ela ficasse curada e ela me atendeu. Além disso, também já tive problema financeiro grande e ela me ajudou a resolver”, conta.
Ela diz que ainda pretende esticar a comemoração e fazer um caruru para a os parentes, em São Gonçalo, no domingo (9).
“Faço questão de celebrar. Só vou deixar de particpar no dia em que não puder mais. É uma coisa muito maravilhosa que não sei nem descrever a intensidade”, destaca.
Tradição
Os festejos à Santa Bárbara surgiram desde 1641, quando foi instituído o Morgado de Santa Bárbara, composto de propriedades e capela ao pé da ladeira da Montanha. O Morgado foi montado pelo casal que adquiriu a santa trazida de portugal pelos portugueses.
“Tudo começa quando os portugueses trazem a imagem da santa para cá. Depois, uma família de portugueses aqui, que tinha um mercado na região onde hoje é o Comércio, compra a imagem. Lá foi aberto o Mercado de Santa Bárbara e começaram os festejos a ela. Só que teve um incêndio no local e o mercado mudou para a Baixa dos Sapateiros, onde é hoje”, explica o historiador e integrante da irmandade, Júlio César Soares.
Ano depois, o casal doou a santa para a Irmandade dos Pretos com a condição de que fosse realizada missa todo dia 4 de dezembro, em devoção à santa. “A celebração era feita, inicialmente, na Igreja do Carmo.
Depois, na década de 80 do século XX, passou a ser na Igreja do Rosário. Hoje, são tantas pessoas que participaram que a celebração acontece fora do templo, em uma missa campal. Depois, acontece a procissão”, explica.
Sicretismo religioso e fé
O sincretismo entre Santa Bárbara e Iansã nasceu como uma forma de os africanos escravizados terem liberdade para cultuar seus ritos religiosos. Para muitos, as duas são a mesma pessoa, mas o historiador destaca que elas têm histórias diferentes.
“O sincretismo é o encontro de duas culturas que se transformam em outra. Nesse caso, temos elementos da cultura africana e católica. Isso se deve à colonização. O colonizador era catolico, enquanto os escravos reverenciavam seus orixás. Em determinado momento da história, no entanto, o culto aos antepassados africanos foi proibido. Os escravos, então, perceberam que havia elementos semelhantes entre Santa Bárbara e Iansã e então houve o sincretismo”.
Entre os elementos presentes em Santa Bárbara que são “fortes” da cultura africana, conforme o historiador, estão a espada, a cor é vermelha e o raio, que é o elemento da natureza.
“Santa Bárbara era católica e acabou sendo morta por isso. Inicialmente, a família a proibiu, mas ela tinha fé. Depois, ela foi presa na torre de um castelo, pasou a vergonha de andar nua pelo meio do povo, foi apedrejada e, depois, deram um mato vermelho para ela se cobrir. A seguir, foi decapitada com uma espada. Ainda diz a história que o algoz que a decapitou foi atingido logo depois por um raio. Aí, portanto estão os elementos do vermelho, da espada e do raio”, afirma.
Santa Bárbara e Iansã, no entanto, nunca se encontraram e tinham diferenças. “Uma era do oriente (Santa Bárbara) e a outra era africana. Santa Bárbara, como diz a história, morreu virgem, enquanto Iansã foi mulher de Xangô e de Ogum. Hoje, muitos acham que as duas são a mesma pessoa. As pessoas mantêm viva uma fé que nunca morre, que é passada de pai para filho. Essa construção histórica e simbólica faz com que Salvador sejão tão forte na questão do sincretismo”, diz.
G1