Numa reunião recente com a matriz chinesa, executivos brasileiros da Chery quase viram naufragar os planos de exportar para países da América do Sul por um problema externo à subsidiária: a infraestrutura precária. Foi necessária uma dose extra de negociação para explicar aos chineses porque os carros não seriam transportados por trens. “Não temos uma linha ferroviária disponível, então tivemos de buscar alternativas”, diz Luciano Resner, vice-presidente de operações da montadora.
Sua equipe passou a trabalhar em soluções para minimizar os gargalos logísticos que ainda contribuem para tornar menos vantajoso exportar ao Chile a partir do Brasil do que da China. O esforço de convencimento está longe de ser uma novidade dentro da Chery. Em outras ocasiões, os brasileiros já tiveram de explicar por que o deslocamento dentro do País demorou mais do que o marítimo numa importação da Ásia e por que a linha de produção teve de ser interrompida certa vez por dificuldades em receber peças importadas. Casos como o do grupo chinês retratam as dificuldades diárias de milhares de empresas acostumadas a lidar com o chamado Custo Brasil, que inclui entraves burocráticos e logísticos que reduzem a produtividade do País.
Nos últimos anos, o governo federal tentou melhorar os modais de transporte com a ajuda da iniciativa privada, através dos planos de concessões. Mas muitos dos projetos divulgados sequer saíram do papel por total desconfiança dos investidores. Para não correr o mesmo risco, a equipe do presidente Michel Temer decidiu adotar mudanças profundas na forma de elaborar os leilões que pretende realizar até 2018. Alterações nos prazos de avaliação dos editais e na maturidade dos projetos a serem ofertadas foram incorporadas no primeiro lote de ativos, apresentado na terça-feira 13.
Ao todo, 34 projetos serão oferecidos à iniciativa privada, por meio de concessões ou privatizações. Vão desde aeroportos até ferrovias. A maior parte já constava dos planos divulgados pela ex-presidente Dilma Rousseff, mas há novidades, como a inclusão do setor de saneamento e as áreas de energia e mineração. Investidores receberam com otimismo o que consideram ser uma orientação mais favorável à iniciativa privada. Embora ainda façam algumas ressalvas, eles acreditam que as chances do processo caminhar são maiores. “O clima melhorou”, afirma Marcio Lutterbach, sócio da PwC Brasil na área de infraestrutura. “Há um norte nas políticas do governo que está agradando os investidores.”
O principal entrave da Era Dilma será revisto: a limitação das taxas de retorno. Mas além de uma rentabilidade mais realista com as condições de mercado, há um esforço para diminuir riscos regulatórios e tornar o processo de concessão mais claro e previsível. A partir de agora, os editais serão publicados também em inglês e terão um prazo mínimo de 100 dias para avaliação até o dia da disputa, em vez dos 45 dias nas tentativas anteriores. Os projetos só irão a leilão se tiverem passado pelo aval do Tribunal de Constas da União (TCU) e com a licença ambiental emitida.
Os editais devem trazer contrapartidas adequadas ao tamanho do projeto, como as obrigações de duplicação de pistas, que devem ser atreladas a um nível mínimo de receita. “São mudanças que parecem relativamente simples, mas dão um pano de fundo do tipo de tratamento a ser levado adiante”, afirma Venilton Tadini, presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e das Indústrias de Base (Abdib). “Quando somadas, mostram um quadro distinto do passado.” A Infraero (estatal aeroportuária) e a Valec (estatal de engenharia ferroviária) foram excluídas dos processos, de forma a minimizar o risco de sociedade com o poder público, apontado como um desconforto por investidores nos planos anteriores.
O governo também promete aprimorar a gestão das agências reguladoras, assim como tornar mais célere o processo de apreciação dos projetos para o financiamento nos bancos públicos. Acima de tudo, as principais mudanças mencionadas por investidores e especialistas são o fortalecimento e a unidade do processo decisório, agora concentrado na Secretaria do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), comandada pelo ex-ministro da Aviação Civil, Moreira Franco, e com a participação direta do presidente Temer.
“O governo Dilma sofria de uma fortíssima fragmentação decisória, com diferentes espectros e visões”, afirma Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria. “O que vemos agora é uma centralidade de interlocução com o setor privado pela secretaria do PPI.” O consultor destaca também uma disposição maior da equipe atual para dialogar com o setor privado, sem ideologias. “À medida em que o mercado era apenas tolerado no governo Dilma, o ânimo do setor privado não foi lá muito grande”, afirma Frischtak. “Como se comprou ânimo naquela época? Com subsídios pesadíssimos do BNDES e do FI-FGTS.” Como se sabe, subsídios geram custos aos cofres públicos.
Reduzir o peso do banco de fomento e das fontes públicas é uma das metas da nova etapa do programa, permitindo mais ênfase nas instituições privadas e no mercado de capitais. Como isso se traduzirá nos projetos ainda é o ponto de maior dúvida e incertezas entre os analistas. O mais provável é que seja um processo gradual, com um uma participação ainda elevada do BNDES e do FI-FGTS no início. Juntas, as duas instituições irão disponibilizar R$ 30 bilhões para as concessões. Os recursos serão usados principalmente na compra de debêntures a serem lançadas para a execução dos projetos.
Não haverá mais a possibilidade de financiar até 100% do empreendimento. O consórcio precisará contribuir com uma fatia de ao menos 20% de capital próprio. Foi encerrado também o empréstimo-ponte, concedido até a estruturação da operação de longo prazo, e que enfrentou problemas na última rodada de concessões. No mercado, há a expectativa de que os fundos de pensão, que administram
R$ 711 bilhões em ativos, invistam no setor. “A estabilidade das regras é fundamental”, diz José Ribeiro Pena Neto, presidente da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp). “Nossa experiência recente não foi das mais bem sucedidas em vários projetos de infraestrutura.”
Dúvidas Entre os projetos, os mais garantidos são os quatro aeroportos (Porto Alegre, Florianópolis, Salvador e Fortaleza), considerados praticamente prontos. Eles serão os primeiros a serem leiloados. Na outra ponta, os que mais geram dúvidas são as ferrovias, anunciadas desde o primeiro plano de concessões da ex-presidente Dilma, em 2012, mas até hoje não leiloadas. A Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), num trecho de 537 quilômetros da Bahia, retrata as incetezas. Embora esteja com 70% das obras concluídas, não conta ainda com o porto que serviria para escoar a carga de minério, cujos preços também inviabilizam o transporte.
O que pode surpreender num caso como esse é a entrada de investidores chineses. “A nossa capacidade de antever o interesse do mercado melhorou muito”, afirma José Carlos Medaglia Filho, diretor-presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), estatal criada na gestão Lula para gerir o trem-bala. Segundo Medaglia, os estudos sobre ferrovias foram ampliados para englobar possíveis interessados para além de grãos e minérios, como a indústria química. “Na medida que compartilhemos essas novas impressões, os investidores terão capacidade de fazer uma análise mais aprofundada.” A intenção é transformar a EPL numa área de “inteligência” das concessões, subsidiando o governo com dados e estudos, além da estruturação de projetos.
Medaglia não descarta a hipótese de o governo postergar projetos caso haja indicações por parte dos investidores de que não haverá interesse ou da necessidade de aprofundar estudos. O plano de concessões é uma peça-chave da economia como um todo. De um lado, porque seu êxito depende do avanço da agenda de reformas proposta pelo governo. De outro, porque é uma das alternativas da equipe econômica para conseguir estimular a atividade, a geração de emprego e a arrecadação. A expectativa é de que, apenas em 2017, os leilões possam gerar um saldo extra de R$ 24 bilhões à União.
“O poder público não pode fazer tudo, mas deve atuar como agente indutor do crescimento e do emprego”, afirmou Temer na reunião do PPI, na terça-feira 13. “O PPI visa ao crescimento do País.” Nos cálculos da Inter.B Consultoria, a recuperação dos investimentos deve gerar um adicional de R$ 30 bilhões nos recursos destinados à infraestrutura, algo próximo de 0,5% do PIB, volume insuficiente para tirar o atraso logístico e a defasagem em relação aos principapis concorrentes. No item qualidade de infraestrutura do ranking do Fórum Econômico Mundial, o Brasil aparece na 74ª posição, numa lista de 140 países, atrás do bloco dos Brics e de economias como a Turquia.
“O País precisa de infraestrutura para melhorar a sua capacidade de crescer”, afirma Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central (leia entrevista ao final da reportagem). Nos próximos meses, integrantes do governo viajarão o mundo para apresentar as oportunidades de investimentos em infraestrutura no Brasil. As rodadas vão desde um encontro do presidente Michel Temer, em Nova York, após a Assembleia Geral da ONU, até as viagens da equipe à Ásia e Europa. Segundo Karla Bertocco, subsecretária de Parcerias e Inovação do governo de São Paulo, que esteve fora do País para vender o plano paulista, a recessão reforça a importância da qualidade dos projetos nas conversas com os estrangeiros.
“Não dá para emprestar a credibilidade do País aos projetos”, afirma. “Tem de modelar para que o estudo pare em pé independete do que aconteça.” Na primeira viagem após a confirmação do impeachment, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, já havia citado o plano. Na ocasião, chegou a mencionar um portfólio de US$ 269 bilhões de investimentos em infraestrutura. No anúncio oficial, o governo preferiu não estimar cifras, como forma de mostrar cautela em relação às divulgações feitas pela ex-presidente Dilma, em que foram apresentadas volumes bilionários no plano. “Esse programa não é um projeto publicitário, uma ação de marketing”, afirmou Moreira Franco, no evento de lançamento.
Além de leilões não realizados, os planos de concessões anteriores deixaram problemas em ativos concessionados, como os aeroportos de Galeão e Viracopos. O governo estuda revogar os contratos e relicitar os ativos, assim como permitir uma extensão de concessões que estão para vencer por meio de mais investimentos. Se tudo for adiante, o governo conseguirá dar um importante passo para tirar os projetos do papel. A meta, com o passar dos anos, precisará ser mais ambiciosa para alcançar o patamar de investimento de 5% do PIB, considerado necessário apenas para repor a depreciação dos ativos. Até lá, executivos brasileiros como os da Chery ainda terão de buscar bons argumentos para explicar os gargalos logísticos do País.
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Da Istoé Dinheiro
Por: Gabriel Baldocchi