Alvo de discussão na gestão de Jair Bolsonaro, as mudanças nas políticas voltadas às populações indígenas devem atingir também a oferta de serviços de saúde para esses grupos.
No Ministério da Saúde, a equipe do ministro Luiz Henrique Mandetta trabalha em propostas que incluem alterar o status da secretaria que hoje cuida do setor e repassar parte do atendimento em saúde indígena a estados e municípios. Hoje, é a União quem responde por esses serviços.
A ideia inicial é que, em locais em que a pasta considera que os índios estariam mais próximos ou vinculados áreas urbanas, o serviço seja guiado pelas prefeituras -caso de grupos de parte da região Sul, por exemplo.
Onde esse contato é misto, como em grupos de Mato Grosso do Sul e em alguns estados do Nordeste, pelas secretarias estaduais de Saúde. Já o atendimento de índios que ficam em áreas tidas como mais distantes, como Acre e Roraima, ficaria com a União.
“Vamos discutir etnia por etnia, caso a caso”, afirmou Mandetta à reportagem.
Ele defende as mudanças. “Se temos um Sistema Único de Saúde, vamos ter um sistema paralelo de saúde indígena, mesmo quando o índio está dentro do meio urbano? Me parece que a resposta disso é lógica: não tem porquê”, afirma.
Com as mudanças, parte das estruturas hoje responsáveis pelo atendimento aos índios pode ser alterada. Desde 2010, a política de saúde indígena é coordenada pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), por meio de espaços vinculados a 34 DSEIS (distritos sanitários indígenas).
Os distritos são divididos conforme a ocupação geográfica das comunidades indígenas. Atualmente, a secretaria responde pelos cuidados de 765 mil índios de 305 etnias espalhadas pelo país.
“Será que precisamos mesmo de DSEI no Rio de Janeiro?”, questiona o ministro.
Técnicos do ministério, porém, temem que as mudanças tragam uma mudança ainda maior além da redefinição dos DSEIs, como um esvaziamento ou até extinção da Sesai.
A reportagem apurou que uma das possibilidades em análise é que a secretaria seja transformada em um departamento dentro de uma futura Secretaria Nacional de Atenção Básica, área que é responsável pelo atendimento inicial no sistema de saúde.
Questionado, Mandetta admite que uma mudança na estrutura pode ser discutida.
“Hoje a Sesai só faz atenção básica. Se tem uma secretaria nacional de atenção básica, pode ser que essa secretaria consiga fazer a saúde indígena”, diz ele, que evita dar certeza sobre a mudança.
Ainda segundo o ministro, outro ponto que deverá ser revisto são os atuais convênios com ONGs responsáveis pela contratação de trabalhadores de saúde.
Atualmente, a Sesai mantém contratos com oito dessas organizações. Em 2018, de R$ 1,5 bilhão destinados à saúde indígena, cerca de R$ 675 milhões foram direcionados às ONGs.
Para Mandetta, falta controle do uso desses recursos.
Na tentativa de justificar as mudanças, o ministro tem citado que a área enfrenta outros problemas, como o alto volume de indicações políticas nos DSEIs.
Disse ainda ter recebido denúncias que incluiriam até mesmo o uso de aviões do SUS para o tráfico.
Em nota, o ministério diz que “as denúncias sobre a questão do transporte na saúde indígena estão sendo apuradas e, no momento, não há confirmação oficial”.
‘RETROCESSO’
Ao mesmo tempo em que é defendida pela nova gestão, a possibilidade de transferir parte do comando dos serviços a estados e municípios desagrada lideranças indígenas, para os quais há risco de desassistência.
“Já estivemos na saúde nos municípios e foram nossos parentes que morreram”, afirma o presidente do Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena) de Altamira, William Domingues, conhecido como Uwira.
Ele lembra que, antes da criação da Sesai, em 2010, parte do atendimento já ocorria nos municípios, quando a saúde indígena ficava a cargo da Funasa.
“Naquela época, passamos muitas dificuldades”, afirma Yssô Truká, representante do conselho distrital de Pernambuco. “Muitas lideranças políticas em municípios eram ligadas a latifundiários. Perdemos muita gente por desassistência.”
Outros problemas, afirma, eram a distância de unidades de saúde, a constante troca de equipes a cada mudança de prefeitos e a falta de preparo dos trabalhadores para lidar com as necessidades de saúde e características desses grupos.
“Queremos que, no nosso itinerário terapêutico, nossos pajés e parteiras estejam junto com a gente.”
O subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, coordenador da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, que acompanha populações indígenas, diz que a proposta de tentar integrar o índio à rotina de atendimento nos municípios mostra uma ofensa à diversidade desses grupos.
“A saúde indígena existe não por um privilegio do indígena, mas por uma peculiaridade cultural que deve ser respeitada, além da questão das doenças que são diferenciadas. Parece que nem isso o ministério está observando muito. Em termos de saúde, o que o ministro propõe é um remédio que mata o paciente.”
Questionados, lideranças dos Condisis admitem problemas na saúde indígena, como o excesso de indicações políticas, mas afirmam que a medida não justifica repassar a responsabilidade pelo atendimento aos municípios.
Bigonha concorda. “Se há problemas, vamos corrigi-los, e não pegar um indígena que tem problemas em seu sistema e inseri-lo em um sistema muito maior com problemas muito maiores.”
Já para Mandetta, as mudanças visam atender o interesse dos índios. “Onde o índio estiver completamente integrado, repassar o dinheiro para o município faz o índio poder estar mais próximo da politica que o envolve”, diz.
Bahia Notícias