A heroína chegou ao fluxo da Cracolândia, na Luz, região central de São Paulo. A Polícia Civil investiga um grupo de nigerianos e tanzanianos que está trazendo a substância do oeste da África e a comercializando em pequenas quantidades, que custam R$ 50 – cinco vezes mais cara que a pedra de crack.
Se antes a droga, um opióide extraído da papoula, aparecia apenas de maneira esporádica, agora basta ir ao local para encontrá-la, ainda que comercializada por poucos traficantes. A heroína disponível na Cracolândia é vendida em pequenos sacos, em pó, e é consumida em cachimbos, assim como o crack. O efeito entorpecente é mais fraco do que quando a substância é injetada, mas há maior risco de overdose.
Os principais usuários da droga não são brasileiros, mas outros africanos que moram na região central de São Paulo, principalmente nigerianos e tanzanianos. O consumo não é generalizado e não é comum encontrar usuários nas ruas, ainda dominada pelo crack.
O Estado ouviu agentes de saúde que atuam no local e psiquiatras que confirmaram a presença constante da droga por meio dos relatos de usuários. De acordo com eles, a substância circula há pelo menos dez meses, mas em pequena quantidade. “Eles comercializam à noite e vem até gente de fora para comprar” diz um agente de saúde que atua no local.
A reportagem circulou pelo fluxo com auxílio do agente, que apontou parte dos locais onde há o consumo, mas não foi possível ver nenhum usuário ou traficante que tivesse a substância. “Não é todo mundo que vende, é mais raro que as outras drogas. Para achar usuário, tem que olhar nas barracas”, diz.
Ao menos três dependentes químicos disseram que a droga está circulando, mas negaram consumi-la. “É coisa de gringo, custa caro”, disse um deles. Um dos rapazes ofereceu heroína à reportagem, “que tem efeito que demora mais para acabar”, mas afirmou que precisaria pedir a outra pessoa. Também exigia pagamento antecipado.
Crime
Agentes do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) tentam identificar o grupo de traficantes nigerianos e tanzanianos e a quantidade de droga que circula na região, mas há dificuldades.
O delegado de polícia Ruy Ferraz Fontes, diretor do Denarc, diz que a droga não fica armazenada no local, como as pedras de crack, que são facilmente vistas em pratos no meio do fluxo. “Eles têm intermediários que são procurados por quem consome e aí vão buscar a droga em outro lugar. E esses intermediários mudam, não são os mesmos”, explica o delegado. “Ainda é um uso bem restrito. O forte da região é o crack, até porque a população dali não tem dinheiro para comprar a heroína, que é mais cara”, explicou.
A única apreensão de heroína na Cracolândia foi feita em março do ano passado. Dois policiais atendiam a uma ocorrência de suspeita de tráfico de drogas por tanzanianos em um apartamento na Rua General Osório. Quando chegaram na porta do edifício, viram que um homem entrou no local, ficou por cerca de 15 minutos e desceu. Ao abordá-lo, verificaram que tinha uma porção do que mais tarde se confirmou, pela perícia, ser heroína. O homem disse que era usuário e havia comprado a substância de uma dupla de africanos que morava no prédio. Todos foram detidos e o usuário, liberado depois.
Embora os homens não tenham dado informações à polícia sobre a origem da droga – ela é produzida na Ásia, passa pela África e vem para o Brasil -, a suspeita é que pertenciam a nigerianos. Para Fontes, os africanos podem ter feito um acordo com o PCC, que domina o tráfico no local. “Sem autorização eles não conseguiriam vender nada.” Fontes disse que o grupo atuaria na Cracolândia há mais tempo do que foi detectado pelos agentes de saúde. Segundo o ele, o bando está lá há pelo menos um ano e três meses.
Apesar das incursões feitas no fluxo, com câmeras escondidas, a heroína não é vista na “feirinha” de rua. “Sabemos que há uma rotatividade, mas em pequena quantidade”, diz Fontes.
Psiquiatra admite relatos de uso; extensão da rede é desconhecida
O psiquiatra e coordenador do programa Recomeço do governo estadual, Ronaldo Laranjeira, disse que o núcleo que atua no local, o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), tem relatos do uso da heroína, principalmente da população africana, mas ainda não se sabe a dimensão do consumo. “Não temos um diagnóstico claro da rede ou da extensão do problema”, diz.
Ele diz que, embora o núcleo tenha medicação para tratar da abstinência da droga, não há evidências, por enquanto, de que a substância vá se espalhar. “Por que o ecstasy não é mais consumido que o crack, por exemplo? Porque o crack custa R$ 10 e o ecstasy, R$ 50. Essas drogas (heroína e ecstasy)têm um ciclo mais restrito”.
Embora a droga não tenha se espalhado, especialistas apontam para o risco de a substância, com altas chances de overdose, ganhar mais adeptos, por causa do ambiente favorável ao consumo. “Um dos fatores de risco para o consumo de drogas é o ambiente. Essa população da Cracolândia está exposta à heroína. Não estão consumindo, mas podem consumir. Não é nem pelo prazer, mas pelo comportamento de experimentação, pela curiosidade”, diz a pesquisadora do Instituto de Políticas sobre Drogas (Inpad) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ana Cecília Marques.
Ela explica ainda que a substância fumada, com efeito mais fraco que a injetada, pode ter consequências ainda mais graves. “Tão rapidamente quanto outras drogas fumadas, ela chega no cérebro e já faz sua ação de droga depressora. A heroína mata mais do que cocaína.”
O diretor médico do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas da USP, Anthony Wong, diz que a existência de uma comunidade de usuários de heroína, ainda que pequena, é um risco que deve ser combatido assim como o crack. “Há 20 anos ninguém sabia o que era o crack. E já se dizia: se esse negócio ficar sem controle, vai ser a maior tragédia que o Brasil verá. Hoje o crack é um dos maiores problemas de saúde pública. E com a heroína, uma das drogas que causam dependência mais rapidamente, não deve ser diferente.” Wong afirma ainda que, se a substância for injetada, aumentam os riscos de doenças transmitidas com agulhas.
Droga é mais comum na Ásia, Europa e EUA
O relatório mundial sobre drogas da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2016 aponta que os opiáceos (ópio, heroína e morfina) têm cerca de 17 milhões de usuários pelo mundo.
O número global de usuários, segundo o estudo, mudou pouco nos últimos anos, afetando 0,4% da população global de 15 a 64 anos em 2014. A concentração do uso, segundo a ONU, acontece na seguinte ordem: Ásia oriental, Ásia central, Europa e América do Norte.
Mesmo com uma queda de 38% na produção de ópio, o órgão vê baixa possibilidade de redução no consumo. O relatório destaca que houve um aumento do uso de heroína na América do Norte na última década, o que explica o aumento no número de overdoses pela droga.
Já na Europa, o consumo vem caindo. O Brasil não é citado no capítulo que fala sobre a droga – o destaque do País é em cocaína. O Irã registrou a maior quantidade de opiáceos apreendidos, respondendo por 75% da apreensão mundial em 2014. De toda a morfina apreendida no mundo, 61% vieram do país, além de 17% de toda a heroína. A Turquia aparece no relatório em segundo lugar nas apreensões de heroína, seguida pela China, Estados Unidos, Afeganistão e Rússia.
Apreensões
5,03 quilos de heroína foram apreendidos pela Polícia Federal em 2013, segundo o Mapa de Apreensão de Entorpecentes.
75% das apreensões de ópio foram registradas no Irã em 2014; País também respondeu por 17% das apreensões de heroína em todo o mundo.
R7